‘Clickbait’: entre o real e o virtual, para onde caminha a civilização? | Levando a Série | F5 News - Sergipe Atualizado

‘Clickbait’: entre o real e o virtual, para onde caminha a civilização?
Série levanta muitas questões interessantes sobre as relações humanas na atualidade
Blogs e Colunas | Levando a Série 24/09/2021 16h30 - Atualizado em 24/09/2021 16h36

Um suspense bem construído e um convite à reflexão sobre os meandros da atual jornada civilizatória são os ingredientes centrais da sugestão de hoje – Clickbait, na Netflix.

“Clickbait” quer dizer “isca de cliques”; no sentido similar em português, “caça-cliques”. Como o nome já entrega, trata-se de uma estratégia visando atrair a atenção de internautas, o que seria razoável, não fosse a opção pelo caminho do sensacionalismo, da mentira pura e simples, ou gerando curiosidade com títulos a incluírem uma “promessa” de forte apelo, a exemplo dos que “desvendam” ou “revelam” supostos segredos e teorias conspiratórias.  Na prática, o uso dessa isca apresenta em comum falta de ética e de compromisso com a verdade, por parte de quem publica e, do outro lado, frustração nos seduzidos por esse tipo de chamada, já que, acessado o conteúdo, percebem que se trata de um embuste.  

No caso da série homônima, porém, a isca de cliques vai ainda mais longe. A história começa com um jantar comemorativo ao aniversário da matriarca da família, Andrea (Elizabeth Alexander), no início do qual discutem os dois filhos dela – o fisioterapeuta no departamento de atletismo de uma escola, Nick Brewer (Adrian Grenier),  e sua irmã Pia (Zoe Kazan).

Nick parece ser um sujeito bacana. Casado com Sophie (Betty Gabriel), pai de dois filhos, ele é bem quisto também no trabalho e entre os amigos. Portanto, apavora a todos quando, no dia seguinte ao malfadado jantar, surge na internet um vídeo no qual o fisioterapeuta aparece com ferimentos, claramente vítima de um sequestro, e segurando um cartaz escrito à mão, onde se lê “Eu abuso de mulheres”. Ao choque se soma a urgência, pelo teor de outro cartaz mostrado por Nick no vídeo: “Com cinco milhões de visualizações eu morro”. Nada disso é spoiler, consta na divulgação e nos trailers de Clickbait.

Nesse ponto, informo que resolvi defenestrar a habitual preocupação em não antecipar nada do enredo, porque o motivo pelo qual a série se elevou acima da irrelevância, em minha ótica, é exatamente esse: o vídeo causa frisson na cidade onde a família reside – Oakland, na Califórnia. Enquanto a esposa do sequestrado, Sophie, e a irmã dele, Pia, recorrem desesperadas à polícia, toda a família acompanha a ascensão célere e ininterrupta de cliques, lutando contra o relógio em meio a uma sociedade que, na história, mostra tanta fartura de ócio aproveitado levianamente, quanto absoluta escassez de empatia.

Maratonei Clickbait envolta pelo suspense do enredo, sem esforço, mas ficou claro que a série jamais chegaria ao seleto rol daquelas que se cravam no meu coração para todo o sempre. A maior parte desse suspense vem do dilema, da tristeza e da dúvida que ocupam as vidas dos familiares, principalmente.  E se for verdade o que diz o primeiro cartaz, que coloca Nick como abusador de mulheres? A situação se agrava logo em seguida ao primeiro vídeo, quando surge mais um e neste é exibido um cartaz com suposta confissão ainda mais grave.

Entre muitas interessantes reviravoltas, a história vai sendo contada, a cada episódio, com ênfase a um dos personagens principais, o que dá ao público chance de ver os acontecimentos sob suas perspectivas.  Começa pela irmã do sequestrado Nick, a enérgica Pia, uma interpretação marcante de Zoe Kazan, atriz que tive prazer de conhecer agora. No segundo episódio, o foco é Sophie Brewer (Betty Gabriel), a esposa de Nick que se mostra um tanto apática, ainda mais em contraponto com a personalidade obstinadíssima da cunhada. 

O fisioterapeuta sequestrado e supostamente abusador é uma interpretação de Adrian Grenier, de que você talvez se lembre como o namorado de Anne Hathaway no delicioso filme “O Diabo veste Prada”. O mais conhecido do elenco, possivelmente apenas pela participação nesse sucesso, tem em Clickbait pouca chance de se fazer lembrado. Sua presença se resume aos vídeos exibidos pelo sequestrador, onde ele aparece espancado e mostrando os polêmicos cartazes. O que salva a relevância do papel são alguns flashbacks que contextualizam situações e nos quais, ainda que brevemente, o ator pode apresentar algo além. 

Quanto aos filhos do casal, Ethan (Cameron Engels) e Kai (Jaylin Fletcher), eles parecem razoavelmente equilibrados, ainda mais para a faixa etária de ambos, um já rapaz e outro perto disso. Porém, como na maioria dos personagens, faltou tempo para sair do superficial e sobraram abordagens estritamente necessárias à narrativa.

Isso foi o que me gerou certa decepção com Clickbait: ao longo de apenas oito episódios, a história se limita à ação e fica difícil “sentir” os personagens com plena percepção e sob emoções das mais diversas, positivas ou não. E é essa espécie de mergulho na alma alheia que me faz gostar tanto de ficção. Posso confiar em minhas conclusões sem o risco de ser injusta com uma pessoa de verdade.

Um ponto positivo reside no detetive Amiri, que se coloca ao lado da família Brewer expressando respeito e solidariedade.  Uma bela atuação de Phoenix Raei, ator e produtor nascido no Irã, mas cuja família emigrou para a Austrália com ele ainda criança. Seu personagem mostra qualidade profissional e humana, o que achei muito proveitoso. Ele é muçulmano praticante, ora em uma mesquita, sua família fala persa, e isso é exposto com naturalidade na série. Divorciado, pai, o detetive rompe com um estereótipo que o entretenimento consolida, de associar muçulmanos a fanáticos extremistas, num só cadinho. Analogicamente, seria como reduzir a Igreja Católica aos inquisidores da Idade Média; ou toda a comunidade evangélica aos “mercadores da fé”.

Ambientada em Oakland, na California, Clickbait teve a maioria das gravações feitas em outro continente, na cidade australiana de Melbourn. Nasceram no país os criadores da série, Tony Ayres e Christian White. O objetivo de ambos é bastante ousado e acho que oito episódios foi pouco para chegar perto de cumpri-lo: questionar aspectos do mundo online e suas repercussões na vida real, ao mesmo tempo propondo uma reflexão sobre até que ponto a vida real vai passando a ser acessória. A necessidade de exposição, os contatos virtuais se sobrepondo aos físicos – isso sem nada a ver com pandemia –  vão resultando em um certo incômodo.  Mas o ápice disso, ao menos para mim, se originou da facilidade com que a rotina da família se vê massacrada por um julgamento precoce e cruel, a incluir ameaças despejadas por intermédio das redes sociais.

Há também um personagem muito questionável, o supostamente jornalista Ben Park (Abraham Lin), cuja moralidade flexível faz com que encare roubo e manipulação emocional como ferramentas possíveis e, mais além, adequadas a sua busca pelo sucesso. Pelo jeito, na base do “custe o que custar”. A imprensa local, aliás, é retratada como um bando de abutres e, pelo que se depreende, a “questão Nick Brewer” é a única pauta na cidade.

Vi uma crítica cujo autor afirma que a pessoa terminará de assistir a série “se sentindo mal”. Outra diz que: “Há algo intrinsecamente desagradável e maldoso na visão de mundo desse programa e, embora contenha algo semelhante a uma tese central sobre como a internet fragmentou as maneiras como nos conectamos, não é exatamente uma mensagem essencial”.  Discordo.  Primeiro, porque creio haver mesmo em volta de nós um “mundo desagradável e maldoso”, cuja visão e adesão passam por escolhas. Tem gente que embarca nele facilmente, afeito à “lei do mais forte”, por exemplo. E existem também – felizmente – os que caminham sob outras “leis”: “gentileza gera gentileza”, por exemplo. A meu ver, o que faltou em Clickbait foi aprofundamento, por isso situo a série como um bom começo.

Nessa vida muito circunscrita às redes sociais, ao uso de tecnologias digitais, soa inverossímil que jovens saibam fazer operações técnicas complexas, de rastreamento, por exemplo, cuja execução na vida real se condiciona a um cabedal de conhecimento específico e maior do que o disponível nos casos que aparecem. Isso aí foi o que mais me soou ficcional. O resto ficou bem mais próximo da realidade do que eu gostaria. Mesmo sem chegar a me sentir mal.

Por fim, deixo à reflexão frase atribuída ao genial Albert Einstein: “Se tornou aparentemente óbvio que nossa tecnologia excedeu nossa humanidade”.  Tomara que não.

Para maratonar:

Clickbait – total de oito episódios, completa na Netflix.

Confira outras séries que abordam a tecnologia de maneira instigante, já comentadas aqui:

Black Mirror e The Twilight Zone

Onisciente

The One e Soulmates

 

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