‘Cooked’ e ‘História da Alimentação no Brasil’: quando a cultura está no prato | Levando a Série | F5 News - Sergipe Atualizado

‘Cooked’ e ‘História da Alimentação no Brasil’: quando a cultura está no prato
Séries são um mergulho delicioso em abordagens sociológicas, muito além do prazer à mesa
Blogs e Colunas | Levando a Série 11/06/2021 16h00 - Atualizado em 11/06/2021 18h02

Já indiquei aqui uma série sobre comida – no caso um reality show chamado Best Leftovers Ever! (Requentados Repaginados, na versão em português). Achei-o muito oportuno por mostrar a infinidade de maneiras pelas quais sobras de refeições podem ser aproveitadas, com resultados deliciosos, diminuindo o desperdício de alimentos, absurdo comum no Brasil que, na atual situação de muitas famílias, se mostra ainda mais aviltante.

Não pretendia voltar ao tema por ora, mas descobri na Netflix uma minissérie documental que fui conferir imediatamente: Cooked, baseada no livro “Cozinhar, uma história natural da transformação”, do jornalista e escritor norte-americano Michael Pollan. Fiquei absolutamente fascinada pelo trabalho dele quando li “O Dilema do Onívoro”, lançado em 2006 e por mais de 50 semanas na lista de mais vendidos do jornal The New York Times. Eis um resumo extraído do site do próprio: “Por mais de trinta anos, Michael Pollan tem escrito livros e artigos sobre os lugares onde os mundos humano e natural se cruzam: em nossos pratos, em nossas fazendas e jardins, e em nossas mentes”. Em 2009, Pollan foi nomeado um dos dez melhores “Líderes do Novo Pensamento” pela revista Newsweek e, no ano seguinte, a revista Time o classificou como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. Sou fã de carteirinha.

A minissérie Cooked leva à telinha esse olhar muito especial de Pollan, explorando a evolução histórica da preparação dos alimentos, de seus significados e de sua capacidade universal de conectar as pessoas. Cada um dos quatro episódios de Cooked parte do respectivo elemento natural, demonstrando, de maneira lúdica e muito interessante, as variadas formas pelas quais fogo, água, ar e terra agem sobre os alimentos, em preparações de origem até milenar. Pollan nos leva a viajar por vários países em prol do retorno à cozinha para recuperar tradições e saberes perdidos, numa reconexão que promove não só a saúde física, mas, creio eu, também a mental e a espiritual.  Aqui em casa, quando havia festas – o que não ocorre desde o início da pandemia -, todas se passaram na cozinha, por mais que os convidados tivessem opção de se espalhar por outros locais. 

Cabe destacar que o tom da minissérie não inclui qualquer julgamento às pessoas cujos afazeres cotidianos impuseram uma relação alimentar restrita a tirar comida de um pacote e colocá-la no forno de micro-ondas. Embora registre os evidentes impactos à saúde gerados por tal rotina, como o crescimento de obesidade e do diabetes, um dos trechos mais surpreendentes de Cooked tem como alvo a indústria alimentícia nos Estados Unidos e sua articulação deliberada para vender como ideal a comida congelada e/ou enlatada. O processo deslanchou ao término da Segunda Guerra Mundial, onde supriu a alimentação dos soldados, e agora era preciso encontrar um novo mercado. Chegou ao ápice nos anos 50 e 60, quando a propaganda massiva, direcionada em especial às mulheres, execrava o hábito de cozinhar, mostrado como “extenuante”. Os congelados e enlatados se tornaram o alívio que todas precisavam, a chance de um tempo para se divertir, em contraponto à “comida caseira de má qualidade que os maridos têm que aturar”. Sim, isso mesmo, a comida fresca, caseira – de propriedades aclamadas nutricionalmente como ideais – viu seus méritos soterrados pela imagem de homens fazendo cara feia diante dos pratos preparados pelas esposas. Estas, por sua vez, apareciam nas campanhas odiando a rotina quase escrava que o fogão passou a representar – um fardo a ser retirado das costas. Tudo bem que para algumas ou para a maioria, não sei mensurar, tal apelo bateu na veia, mas é preciso reconhecer a construção cultural de lógica econômica por trás de um processo ininterrupto e de efeitos desastrosos à saúde pública. A população dos EUA, que em 1965 gastava em média 60 minutos cozinhando, hoje leva cerca de 27 minutos preparando a própria comida.

“A tarefa de escolher os alimentos e prepará-los sofreu muita mudança ao longo dos tempos. Ficamos felizes por deixá-la nas mãos de donos de restaurantes ou de supermercados”, diz Michael Pollan, resumindo a vida atual na maioria dos países ocidentais. Porém, alimentar-se, mostra Cooked, vai muito mais longe. No episódio sobre o fogo, há uma passagem que achei incrível. Um senhor idoso, negro, conta que na Guerra do Vietnã, brancos e negros ficavam juntos, agachados, por medo das bombas e dos tiros. “Não fazia nenhuma diferença [a raça], um protegia o outro”, diz. A menção se associa à colheita de tabaco no Sul dos EUA, que precisava ser rápida para manter as folhas em bom estado e, assim, nela trabalhavam em  igualdade de esforços brancos e negros. Eles usavam fogo para apressar a secagem das folhas e, nessa estrutura, tradicionalmente assavam um porco – “era uma das poucas vezes em que brancos e negros sulistas comiam juntos”. O alimento conseguir aplacar algo tão arraigado quanto o racismo dá a medida de seu poder em conectar pessoas, acima de preconceitos inadmissíveis, no passado e ainda em pleno Século XXI.

Nessa verdadeira viagem de Cooked, a gente confere também famílias remando na direção contrária do discurso da indústria alimentícia, lucrativo apenas para a própria. Extraem disso grande prazer e muitas honram receitas transmitidas por gerações, numa espécie de culto gastronômico à ancestralidade. A cozinha sempre foi, tradicionalmente, espaço de união e de experiências preciosas. Na contramão da comida processada ou, pior, ultraprocessada, que destina tal beleza ao esquecimento, Michael Pollan já sugeriu reiteradas vezes: “Não coma nada que sua bisavó não reconheceria como comida”.

A narração de Michael Pollan ao fim de cada episódio de Cooked me recordou os motivos pelos quais considero “O Dilema do Onívoro” uma obra-prima, pela forma com que mescla eficiência em investigação jornalística a um texto tão atraente que me levou a, com perdão pelo trocadilho, devorar o livro. Um exemplo que me emocionou em especial, por exprimir com exatidão meu sentimento sobre o ato de cozinhar, está no desfecho do terceiro episódio: “Nos cálculos da economia, fazer isso talvez não seja o uso mais eficiente do seu tempo. Mas é bonito mesmo assim. Pois existe hábito menos egoísta, trabalho menos alienado, tempo menos desperdiçado do que preparar algo delicioso e nutrir as pessoas que você ama?”. Assino embaixo.

Passando à “nossa panela”, está disponível na Amazon Prime Video uma opção que também aborda comida sob prismas que transcendem meros sabores: História da Alimentação no Brasil. A série documental é integralmente baseada no livro homônimo, lançado em 1967 por Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), o folclorista, historiador, professor e jornalista potiguar que se consagrou mundialmente como um dos mais importantes pesquisadores das manifestações culturais brasileiras.

Produzida pela Heco Produções em parceria com o Cinebrasil TV e dirigida por Eugenio Puppo, a série  foi feita em 2017, comemorando os 50 anos dessa extensa obra de Cascudo, tida ainda hoje como o maior registro histórico e sociológico sobre a culinária brasileira. Cascudo viajou pelo país de 1943 a 1962, entrevistou ex-escravizados, gente simples nas feiras, especialistas, donas de casa; pesquisou as culturas de etnias indígenas e uma extensa bibliografia. Foi ainda à África conhecer as origens de vários pratos que nos chegaram pelos homens e mulheres escravizados e somaram-se aos dos povos originários do Brasil e dos colonizadores portugueses, conformando nossa culinária riquíssima, já que resultante dessa miscigenação de influências.

“A série História da Alimentação no Brasil segue a sequência de capítulos do livro e, com uma edição ágil, traz depoimentos de diversos personagens brasileiros: chefs, artistas, estudiosos e personagens anônimos de diversas regiões do Brasil e de Portugal, compondo um perfil tão profundo quanto saboroso da cultura brasileira e da formação da nossa identidade”, diz a apresentação do trabalho em seu respectivo portal. A equipe trilhou caminho semelhante ao de Cascudo, visitando cidades em vários estados do país e mais onze portuguesas.

Além de respeitar a obra original no desenvolvimento do documentário, com passagens fidedignas ao texto do autor e observando a sequência de capítulos do livro, a série apresenta um caprichado material de arquivo - imagens extraídas de filmes raros e alguns inéditos, longas e curtas-metragens; de acervos particulares e do Instituto Câmara Cascudo; do Museu do Índio e da Cinemateca Portuguesa, entre outros. O resultado é fascinante, outra vez uma viagem culinária que ultrapassa em absoluto o aspecto sensorial, fazendo de ingredientes personagens capazes de constituir relações sociais e econômicas e, mais além, significativo recorte da cultura nacional.

No primeiro episódio, por exemplo, “A Rainha do Brasil”, a série reproduz o entendimento de Cascudo, segundo o qual a mandioca é um ingrediente soberano. Fica evidente a dimensão que ela tem na vida brasileira, sobretudo para a gente simples que faz da moagem para obter farinha um evento familiar, inesquecível para pessoas como o cantor e compositor Chico César, um dos entrevistados em História da Alimentação no Brasil.

No episódio “Verde Milho, Doce Milho”, a pesquisadora e escritora Ana Rita Suassuna fala sobre a relação intrínseca desse alimento com o ciclo junino, diretamente condicionada ao clima. O plantio tradicional ocorre no dia de São José, 19 de março, para a primeira colheita no dia de Santo Antônio, 13 de junho. O auge da produção vai do dia de São João ao de São Pedro – 24 e 29 de junho respectivamente –, o que ela chama de “colheita plena, quando você tem o inverno favorável”. E prossegue a pesquisadora: “daí o São João ser a maior festa do Nordeste, a festa da fartura, da solidariedade, festa da agregação – e quem faz tudo isso é a comida e, na comida, é o milho”.

Como se vê, há muito o que aprender e descobrir nessa jornada cujo fundamento é um olhar mais respeitoso aos alimentos e a seu papel na construção de identidades culturais – o que ambas as séries cumprem com excelência. Por fim, deixo a célebre frase do médico grego Hipócrates (460 a.C. - 377 a.C.), considerado o “pai da medicina ocidental”: “Que o teu alimento seja o teu remédio e o que o teu remédio seja o teu alimento”.

Para maratonar:

Cooked – quatro episódios, disponível completa na Netflix;

História da Alimentação no Brasil – 13 episódios, disponível completa na Amazon Prime Video.

 

 

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