Da densa ‘You’ a mais leve ‘Nove Desconhecidos’, a psique humana é desnudada | Levando a Série | F5 News - Sergipe Atualizado

Da densa ‘You’ a mais leve ‘Nove Desconhecidos’, a psique humana é desnudada
Primeira sugestão expõe a facilidade em atribuir comportamentos execráveis a doenças mentais
Blogs e Colunas | Levando a Série 01/10/2021 17h20 - Atualizado em 01/10/2021 17h20

Um mergulho nas questões emocionais e psicológicas da espécie humana é o saldo das duas séries sugeridas hoje. A primeira, You (Você), na Netflix, desnuda os efeitos catastróficos da doença mental não diagnosticada. A segunda, Nine Perfect Strangers (Nove Desconhecidos), disponível na Amazon Prime Video, promove uma imersão surpreendentemente leve nos dilemas existenciais que, a meu ver, perpassam a psique da maioria das pessoas, obviamente que variando em conteúdo, estopins e nas formas pelas quais acabam se expressando – de maneira deliberada, consciente, ou involuntária.

You leva o público a acompanhar as maquinações mentais do protagonista Joseph Goldberg, interpretado por Penn Badgley, ator já conhecido por sua atuação no sucesso "Gossip Girl", que nunca parei para conferir. Gerente de uma livraria em Nova York, apelidado de Joe, o rapaz aparenta boa índole e até certa doçura. Só que não. Logo no início da série, fica evidente que a criatura carrega uma miríade de perturbações internas que, unidas a sua inteligência e a seu dom para a manipulação, geram uma capacidade ímpar de fazer o mal.

Na primeira temporada, Joe se apaixona por uma mestranda que sonha em ser escritora, Guinevere Beck (Elizabeth Lail), que todos chamam apenas pelo sobrenome. Beck é cliente da livraria onde o jovem trabalha e apresenta ao público, como vítima, a primeira faceta doentia do comportamento do gerente: obsessão levada ao extremo.  Atire a primeira pedra quem nunca bisbilhotou, nas redes sociais, perfis de amores ou paixonites que ficaram no passado, por exemplo. Mas o que Joe faz o enquadra na classificação criminal de perseguidor –  em inglês, “stalker”, termo tão usado no Brasil, sabe-se lá por quais razões, que já derivou até para verbo: “stalkear”.

Destaque-se que há uns furos toscos no enredo. O perseguidor chega a se surpreender com o fato de que os perfis de Beck em redes sociais sejam públicos, algo estranho para uma moça que reside em Nova York e que não tem QI de ameba. Ele também descobre o endereço dela em rápidos cliques. Passa a observá-la através da janela do apartamento, pouco acima do nível da rua, no que teria uma arquibancada de voyeurismo adolescente – e até com adultos –, já que Beck transa e troca de roupa sem dar a mínima para o mundo lá fora.  Nada que prosaicas cortinas não resolvessem.

Em resumo, Joe é tóxico, perigoso, um lobo em pele de cordeiro, como se dizia. E personifica uma ilustração razoavelmente fidedigna de como vai se impondo um relacionamento abusivo. Sim, ele consegue atrair Beck para sua teia, tecida a partir dos gostos e desejos da moça, observados facilmente nas redes sociais dela. E também pelas conversas entreouvidas  enquanto ele a persegue pelas ruas e nos bares onde Beck encontra o trio de amigas de seu círculo mais íntimo. Lá está Joe, usando um boné que lhe garante maior anonimato, discretamente captando cada detalhe.

Em uma obsessão crescente, o rapaz vai alimentando a lógica doentia comum a abusadores. Lembram-se do vilão em Bom dia, Veronica, recomendada aqui? De como ele sempre se colocava como o “protetor” da “frágil” esposa, enquanto despejava nela agressões físicas e emocionais? Em You, Joe se autoproclama o “namorado ideal” para Beck  - e dane-se o que a própria pensa a respeito, embora ela não faça a menor ideia, a princípio, do tamanho da manipulação invasiva a gerar aquele romance. E, muito pior, os movimentos de Joe na busca por manter a relação idílica só existente na cabeça dele.

Porém, como na vida fora da telinha, vão surgindo pistas e, depois, comportamentos cuja obviedade maléfica finda por detonar a fantasia mítica. O pretenso “namorado ideal” realmente acredita em suas convicções deturpadas, age sob as melhores intenções - isso na ótica doentia em que gravita seu próprio universo.  “Vou te ajudar a ter a vida que você merece”, diz Joe a si mesmo, como se falasse com Beck, num exercício de autoestímulo que, de novo, na prática, desdenha a basilar consulta à outra parte.

Bem, nessa vida que Joe estabeleceu que seria a merecida por Beck não se incluem algumas pessoas, entre as quais a melhor amiga dela, Peach (Shay Mitchell), uma jovem rica, mimada e superficial – não muito diferente das outras duas com quem Beck convive rotineiramente. Fica claro na história que a mestranda aspirante a escritora inveja o glamour e a gastança sem preocupação do trio de “patricinhas”, usufruindo por intermédio delas de ambientes e possibilidades inalcançáveis na matemática do próprio orçamento.  Mas é Peach quem implica com o novo namorado de Beck, movida por ciúmes, acima de qualquer percepção capaz de salvá-la da total irrelevância.  Deu azar ao confrontar alguém dotado de muito mais inteligência e sagacidade – além de, não se esqueçam, insano.  

Na construção da lógica que adota a seu bel prazer, conforme a trajetória de Joe vai fugindo ao controle, o rapaz usa de forma recorrente uma justificativa enviesada: “as coisas que fazemos por amor”. Amor não tem nada a ver com nenhum dos atos dele associados à mulher que diz amar e a quem transfere, sem qualquer esforço, a responsabilidade por seus desatinos. Beck teria provocado suas perversões e o levado a cometer crimes, inclusive homicídios. Esse discurso me evocou, de imediato, uma inversão cruel e inaceitável no mundo real, em que a vítima ainda precisa lidar com o risco de levar a culpa.  

Especial complexidade é garantida ao personagem Joe, por intermédio de sua relação com o garoto Paco (Luca Pandovan), filho da vizinha de porta, literalmente.  Ela namora um cara desprezível, Ron, cujo trabalho como oficial de condicional viabiliza a ele contatos poderosos, razão pela qual a mulher não tem coragem de reagir às frequentes agressões de que é vítima, priorizando a segurança do filho.  Em uma cena, ela explica esse quadro a Joe, depois de ouvir o julgamento condenatório dele, sequer imaginando que o homem a questioná-la não tinha um átomo de moral para julgar ninguém.

O protagonista de You tem problemas sérios, que resultam em alta periculosidade, à semelhança de tantos no mundo real que transitam livremente deixando um rastro de sofrimento. É fundamental destacar, porém, que grande parte do que ele faz não pode ser atribuída a seus transtornos, que não me ocuparei em tentar catalogar, por falta de conhecimento para tanto. Há pessoas que enfrentam os mais variados problemas mentais – incluída a psicopatia – sem, no entanto, promover maldades injustificáveis. Na minha sociedade utópica, gente hipócrita como Joe, por conveniência covarde; por fraqueza de caráter ou absoluta falta dele, ou ainda por afinidade com a pequenez, só existiria circunscrita ao adorável território da ficção.   

Não direi uma palavra sobre a segunda temporada de You, porque seria impossível fazê-lo sem adentrar no spoiler.  Apenas cito com alegria que reencontrei nela um ator fantástico – Robin Lord Taylor, o perfeito Pinguim, vilão do universo Batman, na ótima Gotham, igualmente recomendada aqui. Voltando a You, a primeira temporada toma por base o livro homônimo da escritora Caroline Kepnes; a continuação, outra obra dela – "Hidden Bodies" (Corpos Escondidos). A terceira estreia na Netflix em meados deste outubro, aparentemente com um roteiro específico, posto que não encontrei nada sobre um terceiro livro com esse tema da autora norte-americana.

Antes de passar à próxima sugestão, no entanto, vou compartilhar uma descoberta assustadora.  Uma crítica publicada em dezembro de 2019 no portal Omelete revela que principalmente meninas “começaram uma campanha pela compreensão da personalidade tóxica do personagem, defendendo os extremos a  que ele chegava como se fossem fruto de um amor de dimensões desconhecidas”.  Eu tento firmemente ser uma pessoa em constante evolução – nem sempre com sucesso -, agora, convenhamos, esse entendimento se mostra plenamente inadequado. Repito: nenhuma doença ou transtorno, como queiram, justifica ações eivadas de enganação, egoísmo e maldade, não raro levada ao extremo.

Entre as moças a defenderem o comportamento da criatura está a Eleven de Stranger Things – também já recomendada aqui – papel que revelou o talento da jovem atriz Millie Bobby Brown. Ainda segundo o portal Omelete, ela “fez stories em seu Instagram defendendo ardentemente que Joe na verdade não era uma psicopata e estava apenas apaixonado por Beck.” Esse movimento de defesa a Joe ensejou até que o ator a encarná-lo, Penn Badgley, gravasse um depoimento pedindo que as meninas não encarassem o personagem dessa maneira errônea e, sim como o que de fato ele é: um perigo a ser evitado. É triste e aterrador, mas depois que eu vi moças tirando selfies com o assassino/ex-goleiro Bruno, dá para acreditar em qualquer coisa.

Os meandros e desafios da caminhada humana sobre a Terra se apresentam de forma um tanto mais leve – por vezes divertida – em Nine Perfect Strangers (Nove Desconhecidos), disponível na Amazon Prime Video.  A minissérie, de apenas oito episódios, também é baseada em um livro homônimo, este escrito por Liane Moriarty e lançado em 2018. A obra televisiva nos rememora uma consagrada atriz – Nicole Kidman –, que eu mesma não via na telinha há tempo.

Nicole interpreta uma imigrante russa, Masha, que nos Estados Unidos virou uma espécie de guru. Ela é dona e administradora de um resort, o Tranquillum House, cravado num lugar paradisíaco, para onde acorrem os nove perfeitos estranhos do título, selecionados criteriosamente pela própria.

Temos a família Marconi, formada pelo casal Heather (Asher Keddie) e Napoleon (Michael Shannon), com a filha Zoe (Van Patten), cujo aniversário de maioridade acontecerá em meio aos dez dias de retiro naquele ambiente. Ocorrida há três anos, o trio ainda tem dificuldades em superar uma perda irreparável, a do irmão gêmeo de Zoe. Temos também o jovem casal Ben (Melvin Gregg) e Jessica (Samara Weaving), cujo relacionamento está sob tensão; o rústico Tony (Bobby Cannavale); a recém-divorciada Carmel (Regina Hall) e o desesperançoso Lars (Luke Evans). Mas a cereja do bolo reside na autora best-seller Francis Welty, cuja carreira está ladeira abaixo, papel da experiente Melissa McCarthy, que também assina como produtora executiva de Nine Perfect Strangers.

Os clientes de Tranquillum House são recepcionados por Masha e seus assistentes de jaleco, Yao (Manny Jacinto) e Delilah (Tiffany Boone), que coletam os telefones celulares e qualquer coisa capaz de “interromper a jornada de bem-estar” em que se meteu o grupo, um tanto enganado. Os anúncios da casa criavam a expectativa de algo como um SPA, não um espaço de terapia, onde os incautos receberão tratamentos “metabolicamente sob medida” para cada, numa perspectiva de cura de corpo e alma.

Tudo isso é logo explicado pela anfitriã Masha, que faz um modelito etéreo, com suas roupas brancas, magreza em excesso e os longos cabelos loiros com jeito de peruca – “mais adequada para uma festa de aniversário infantil com tema Frozen”, segundo uma crítica. O mergulho dos hóspedes nos respectivos dilemas inclui exames de sangue diários, sob o argumento de conferir se o tratamento está adequado. Ao longo da experiência, o grupo vai se aprumando existencialmente e brota inclusive um romance – até que rola uma degringolada na terapia.

Nine Perfect Strangers é facilmente digerível, porém descartável ao fim de seus oito episódios. O que me inspirou a sugerir a minissérie foi o fato de ela trazer à tona o uso terapêutico da psilocibina, princípio ativo dos chamados “cogumelos mágicos”. Antes que a turma da “moral e dos bons costumes” torça o nariz, corro a registrar que existem centenas de estudos já com sólidos resultados; outros ainda em andamento, conduzidos por pesquisadores(as) de todos os continentes, de modo a atestar metodologicamente os benefícios da psilocibina no combate a transtornos mentais e emocionais. Por exemplo, a substância se revelou quatro vezes mais eficaz no tratamento da depressão do que os antidepressivos comuns, de acordo com um estudo publicado no final de 2020 pela revista científica JAMA Psychiatry, assinado por cientistas da Escola de Medicina da prestigiosa Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos.

Destaque-se, ainda, que ninguém submetido a terapias – devidamente controladas – que se utilizam da psilocibina, passa a ver unicórnios saltitantes ou jacarés vacinados. Os pacientes ingerem as chamadas microdoses, cujo único efeito é atuar sobre a química cerebral, exatamente como fazem os antidepressivos químicos alopáticos – só que com mais eficiência e menos efeitos colaterais, pelo que tem sido comprovado cientificamente já ao longo de pelo menos uma década. Viva a Ciência, portanto, que descobriu na natureza um precioso auxílio na luta contra uma das mais destrutivas patologias.

Por fim, deixo à reflexão as palavras de ninguém menos que Carl Jung, em seu livro “A Prática da Psicoterapia”: “Não há despertar de consciência sem dor. As pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo, para evitar enfrentar a sua própria alma. Ninguém se torna iluminado por imaginar figuras de luz, mas sim por tornar consciente a escuridão”.

Para maratonar:

You – duas temporadas, cada uma com dez episódios, terceira estreia no próximo dia 15, disponível na Netflix;

Nine Perfect Strangers – Uma temporada com oito episódios, disponível na Amazon Prime Video.

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