A Mulher Maravilha (Wonder Woman) completa neste março 80 anos com vitalidade de garota. A primeira heroína dos quadrinhos foi criada durante a 2ª Guerra Mundial, entre outros objetivos para valorizar um nascente protagonismo feminino, já que, com tantos homens no front, a mulherada passou a assumir trabalhos anteriormente fora de questão, como mecânica de aviões, só para citar um. A personagem da DC Comics virou série de TV em meados dos anos 70 e eu particularmente curti demais aquela trilha de abertura com as rodopiadas da MM, no papel que levou uma atriz praticamente anônima ao estrelato: Lynda Carter, desde então convidada a nove entre dez grandes eventos do universo comic.  

A série começou com um longa, um piloto muito bem recebido pela crítica, por ser bastante fiel ao nascedouro da maravilhosa nos quadrinhos. A bela deixa a ignorada Ilha Paraíso, lar das amazonas e fora de qualquer mapa, para lutar contra o nazifascismo. Teve ciência dessa afronta à democracia e, mais além, à evolução humana, por intermédio do piloto norteamericano Steve Trevor, que ela salva do afogamento naquele paradisíaco mar após a queda do avião dele. 

Feita a homenagem pessoal à heroína que mostrou a gerações de garotas que “elas podiam”, vamos a outra adaptação televisiva de uma saga em quadrinhos, esta muito mais jovem e disponível na Netflix - Lucifer. Antes, porém, um aviso a quem encara como heresia criações artísticas que adentram a esfera religiosa libertariamente: as duas sugestões de hoje não se direcionam a esse público. Até porque só vai piorar com a segunda, também original do universo HQ – Preacher (Pregador), disponível na Amazon Prime Video. Essa, então, não deixa pedra sobre pedra, esculhamba os dogmas de várias religiões indistintamente, em jorros de  nonsense. Particularmente, separo fácil meu caminho espiritual das loucuras que acontecem em séries, mas por respeito a quem pensa diferente e prestigia a coluna, deixo claro que é melhor pular essa. 

Aos aficionados por HQs que conhecem bem as versões originais de Lucifer e Pregador, assumo que só vi as releituras televisivas, portanto não serei capaz de apontar as imprecisões que certamente brotaram no trajeto entre as páginas impressas e a telinha. Mas encontrei algumas que vale mencionar, porque, segundo críticas, alteraram o “espírito” das histórias em que se baseiam.

Vamos a Lucifer, o anjo bíblico caído. A série foi adaptada pela Fox TV e, após três temporadas, ficou na corda bamba do cancelamento, decisão revertida por legiões de fãs que atraíram o interesse da Netflix. O personagem surgiu de carona em outra HQ – a consagrada “Sandman”, do autor britânico idem Neil Gaiman. Um de seus livros rendeu uma minissérie que já recomendei enfaticamente neste espaço – Belas Maldições (Good Omens). Posteriormente Lucifer ganhou uma revista para chamar de sua, com roteiro de Mike Carey. Assim como a saga do Pregador, ambas as HQs são publicadas pela marca Vertigo Comics, um braço da DC Comics voltado ao público mais adulto.

O personagem principal – Lucifer Morningstar – decide se aposentar da gerência do Inferno, depois de eras cuidando de, literalmente, infernizar os condenados por toda a eternidade. Cansou. Chegando a Terra, ele resolve se instalar na Califórnia, na cidade de Los Angeles – uma ironia sobre o seu significado em espanhol, “Os Anjos”, e ao mesmo tempo pela característica de ser um centro afeito aos prazeres mundanos. Lá, Lucifer inaugura uma boate chiquérrima, a Lux, instalada em um prédio onde ele habita a cobertura, espaço de farras homéricas.  

Para caminhar entre os mortais, o diabão aposentado se transforma em um homem lindo, interpretado pelo ator Tom Ellis. O problema é que, ao menos na primeira temporada, ele soa também um tanto bobo. A inabilidade de Lucifer diante das questões emocionais humanas, e mesmo de nossa corriqueira vida prática, se reverte num humor expresso em comentários tolos, em feições perplexas que nada se associam a uma entidade que, afinal de contas, é extremamente poderosa. Quase desisti da série, mas ela tem a opção de legendas em inglês e acho esse recurso uma excelente estratégia para estudar/lembrar o idioma. Prossegui e acabei me envolvendo com a história e seus personagens. 

Uma das críticas dos conhecedores do original em quadrinhos me parece importante porque se refere ao cerne da história. Na HQ, Lucifer é incumbido de uma missão pelo próprio Deus: salvar sua criação humana. O anjo caído abraça a ideia, pois recebe a promessa divina de, em troca, ter atendido um de seus desejos.  Assim, ele embarca na vida terrena movido por um objetivo mais louvável do que o inicialmente visível na série, leia-se “estudar” os pobres mortais e se divertir loucamente com eles, numa versão mais leve do estilo “sexo, drogas e rock’n roll”. Mais leve porque, ao menos no campo drogas, o Lucifer televisivo basicamente só aparece ingerindo oceanos de álcool, e nem bêbado ele fica, por sua condição sobrenatural. 

Nessa experiência entre os humanos, Lucifer acaba se relacionando com o Departamento de Polícia de Los Angeles, o que se desvia por completo do enredo em quadrinhos. A crítica recorrente é que tal narrativa apequena o personagem e a própria série, lançando-a no vasto território da investigação criminal, gênero inaplicável no contexto de origem. Mas para o público em geral, se justifica o interesse do anjo caído pela detetive Chloe, excelente papel da atriz Lauren German. O fato é que Lucifer usa com frequência o poder de extrair respostas 100% sinceras das pessoas a quem faz sempre a mesma pergunta: “o que realmente você deseja?”. Funciona com todos os humanos, exceto com a obstinada agente policial, imune a esse controle. 

Uma dos textos mais ferozes sobre esse aspecto da adaptação televisiva já começa detonando: “A mera existência desse programa pode muito bem ser a prova de que a Besta do Apocalipse já anda entre nós, espalhando não terror, mas má televisão”. O autor recomenda que, em vez de assistir à série, os interessados leiam a HQ. 

Dos quadrinhos, sobreviveram à passagem para a TV dois personagens realmente indispensáveis: uma demônio situada entre amiga e serviçal de Lucifer – Mazikeen, interpretada pela atriz Lesley-Ann Brandt – e o irmão dele, o anjo Amenadiel (D. B. Woodside) que, por ordens do Pai, tenta convencer o ex-gerente do Inferno a voltar ao trabalho. No decorrer da série, é difícil não gostar do personagem título, na prática pouco diabólico em termos de maldade, dotado de um perfil até agradável, pelo propósito claro do enredo em demonstrar que ele pune os maus, os supostamente merecedores do Inferno. A Netflix teria encerrado a história na quinta temporada, mas a audiência a fez sucumbir à sexta, anunciada como a final. Vou assistir tão logo se concretize. 

Chegando a Pregador, em comparação, Lucifer parece um conto da carochinha. A saga em quadrinhos dos roteiristas Garth Ennis e Steve Dillon foi levada à telinha carregando nas tintas e desvirtuando a essência do personagem principal, na visão de críticos conhecedores gabaritados da obra de origem. Falando por mim, incapaz de cotejar uma e outra, o ponto crucial é que a série Pregador ganhou lugar no pódio das produções mais dispostas a bancar sua liberdade criativa e dane-se, assista quem quiser.  Na versão da AMC – entre cujas produções originais constam os megasucessos “The Walking Dead” e “Breaking bad”, este já enfocado aqui –, não há qualquer empenho em tornar a história facilmente digerível, pelo contrário. Fora a advertência lá no começo, quanto à abordagem de dogmas religiosos, detonados pela exposição de hipocrisia, entre outros aspectos, também integram a trama tiros, pancadaria e facadas. A violência não é gratuita, ela alicerça o enredo, motivo pelo qual consigo me abstrair do sangue que jorra em várias cenas. Faz parte. Lido muito bem com a maldade no campo da ficção, o problema é lidar com ela no mundo real. 

A história começa com o pregador Jesse Custer tentando se aproximar do pequeno rebanho que frequenta sua igreja, numa cidadezinha texana. O culto leva os fieis a lutar contra o sono, a mensagem dele não transmite qualquer confiança, nem alimento de fé. Ciente da falta de entusiasmo, a própria e a de quem ainda consegue disposição para ouvi-lo, Jesse sofre. Falha na promessa feita ao pai, também pregador, de honrar sua orientação constante: “seja bom, porque maus já existem muitos”. Porém, a incompetência como pastor se revela o de menos, a vida pregressa de Jesse envolve crimes diversos, executados em parceria com Tulip, uma mulher dura, a princípio “do mal”, potência na luta física – boa de porrada, em outras palavras. O casal se ama verdadeiramente, ao modo dele; formam o par romântico mais singular entre os que conheci na ficção dos últimos tempos. 

Jesse Custer é um papel muito bem executado pelo ator Dominic Cooper, que só pesquisando descobri ter encarnado o magnata Howard Stark, pai do Homem de Ferro, no primeiro filme solo do Capitão América. Passou batido na minha memória, improvável se repetir. O mesmo ocorreu com a atriz que interpreta a Tulip, Ruth Negga, cuja extensa e bem sucedida carreira inclui atuações que eu assisti e uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz, em 2017, pelo filme “Loving”, já no rol de minhas prioridades.

Completando o trio protagonista há o vampiro irlandês Cassidy, meu personagem favorito até agora, interpretado pelo ator britânico Joe Gilgun . Embora acumule uma montanha de erros ao longo de seus 89 anos desde a transformação, ele perverte os clichês do enfoque sobre essas criaturas. O vampiro maluco de Pregador demonstra empatia, misericórdia e amor ao próximo, sentimentos que andam em falta no mundo real. 

De volta ao enredo, o errático Jesse Custer é possuído por uma entidade – Gênesis – que lhe confere o poder de dar ordens obedecidas a despeito da vontade de quem as recebe. Até onde vi, a série não explica o motivo pelo qual logo ele foi o escolhido. Mas Jesse acredita que reside nesse poder a sua chance de fazer o bem. A partir desse entendimento se desenrola uma jornada cujo objetivo é encontrar Deus, literalmente. O trio de personagens principais vivencia experiências inéditas, o que, em se tratando daquele casal e do amigo vampiro, já estabelece que tudo, tudo mesmo, pode acontecer.  

Pregador é a série mais instigante dos últimos tempos, mas não se salvou das críticas em comparação à saga HQ que lhe deu origem, embora elas sejam mais leves do que as direcionadas a Lucifer. Uma delas diz que o Jesse Custer da TV é muito pior do que nos quadrinhos, onde a jornada em busca de Deus se mostra mais legítima. Talvez seja adequado à proposta da série, em que a imperfeição humana é a força motriz da história. Uma curiosidade final: Pregador apresenta o personagem mais feio que já vi. Sério, está no topo da lista. A gente até demora para conseguir olhar direito para a tela quando aparece, mas acaba se acostumando, principalmente porque, de todos na história, ele é o de maior beleza interior.  

Despeço-me com essa apropriadíssima citação do grande Pablo Picasso: “O maior inimigo da criatividade é o bom senso”.    

Para maratonar:

Lucifer – Cinco temporadas, total de 75 episódios, sexta já confirmada, disponível na Netflix;

Preacher – Quatro temporadas, total de 43 episódios, completa na Amazon Prime Video.