Duas famílias e suas quizumbas na berlinda com humor e crueza | Levando a Série | F5 News - Sergipe Atualizado

Duas famílias e suas quizumbas na berlinda com humor e crueza
“Sai de Baixo” e “La Casa de Las Flores” detonam principalmente a hipocrisia
Blogs e Colunas | Levando a Série 20/11/2020 16h00 - Atualizado em 20/11/2020 16h01

O escritor Oscar Wilde (1854-1900), que passou o inferno por ser homossexual na Inglaterra Vitoriana, cunhou uma frase a resumir, ainda que com exagero, uma parte dos potenciais percalços das relações familiares, guardadas as devidas exceções: “No início, os filhos amam os pais. Depois de um certo tempo, passam a julgá-los. Raramente ou quase nunca os perdoam”. Se a convivência em sociedade já requer esforços de sabedoria e evolução, as famílias funcionam como um microcosmo onde qualidades, defeitos e diferenças de percepções se tornam mais evidentes. Por vezes, o amor opera sobre esse quadro facilmente; as brigas até ocorrem, porém sem maiores danos à liga poderosa que une aquelas pessoas. Mas nem sempre. As duas séries aqui sugeridas abordam as vidas de famílias ficcionais sem qualquer cortesia, mas, sob o norte do humor, imprimem leveza aos maus momentos. E são muitos.

A primeira é Sai de Baixo, disponível na Globoplay. A ideia foi apresentada em 1996 ao diretor Daniel Filho – à época produtor independente – pelo ator Luis Gustavo: um programa de televisão gravado em teatro, com plateia, nos moldes do nascedouro da TV brasileira, quando os improvisos brotavam para superar eventuais sobressaltos, já que as transmissões à época aconteciam sempre ao vivo. A ideia vingou e a série foi exibida nas noites de domingo pela TV Globo, de 1996 a 2002, com audiência a justificar seis anos em cartaz, entre episódios originais e reprises. Inicialmente com direção de Daniel Filho, as gravações sempre ocorreram no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo, para uma plateia de 700 pessoas a cada semana. Sai de Baixo ganhou um revival em 2013, com quatro edições especiais, também gravadas no Teatro Procópio Ferreira, e virou um longametragem, lançado nos cinemas em fevereiro de 2019.

A história começa com Carlos Augusto Vasconcellos Antibes - o Caco Antibes (Miguel Falabella) – e a esposa Magda (Marisa Orth), filha do brigadeiro Sayão, já falecido, tendo todos os seus bens confiscados por falcatruas descobertas pela Receita Federal nos negócios dele. No bojo desse patrimônio ilícito, está a mansão em que moravam, nos Jardins, endereço super chique da cidade de São Paulo. Completamente duros, eles se mudam para o apartamento do tio de Magda, Vanderlei Mathias, o Vavá – mais um grande papel do ator Luis Gustavo, como já dito, criador da série. Dono da empresa de turismo Vavatur, além de aturar o casal, ele ainda recebe a irmã, Cassandra (Aracy Balabanian), a mãe de Magda que, ao ficar viúva, foi morar com a filha. Completam o elenco o porteiro Ribamar – o humorista Tom Cavalcante, afiadíssimo – e a empregada doméstica Edileuza, interpretada por Cláudia Jimenez. Posteriormente, ela deixou a série e outras duas atrizes assumiram em sequência a cozinha do apartamento do Largo do Arouche e parte das muitas estripulias que lá se desenrolavam – Márcia Cabrita, como Neide Aparecida, e Cláudia Rodrigues, como Sirene. O porteiro Ribamar também foi substituído pelo colega Ataíde, em bela atuação do saudoso Luiz Carlos Tourinho, falecido em 2008 aos 43 anos, vítima de um aneurisma cerebral.  

Entre os méritos de Sai de Baixo, um dos mais significativos é operar sobre a mediocridade e a hipocrisia infelizmente longevas, ao ponto de quase nada ter mudado. Caco Antibes e a sogra Cassandra, mesmo na nova condição de parasitas do parente, jamais perderam a arrogância, a empáfia e o sentimento de superioridade em relação aos menos favorecidos economicamente. O bordão de Caco - “eu tenho horror a pobre” – e suas piadas sobre a exclusividade de alguns de seus bens (a exemplo de uma camisa bordada pelas freiras do Katmandu, coisas loucas assim) expõem a face metida à besta de parte da sociedade brasileira. Cassandra também representa isso muito bem; ela se esmera em humilhar os “serviçais” – leia-se o porteiro e a empregada, esta frequentemente recebendo a ordem bem grosseira de que voltasse para a cozinha, quando falava algo sem ser convidada – e nunca era. 

Em uma entrevista à revista IstoÉ, em 1999, Falabella foi perguntado se o público nunca reclamou da aversão que o personagem Caco Antibes tinha a pobres. Ele classificou o personagem como “fascista e louco”, ressalvando, porém, que “é feito com charme e vira um engraçado”. E prossegue: “os pobres adoram, me dão presentes, me contam situações. Acho saudável essa reação. O povo é sempre mais saudável que a classe dominante. O Brasil só continua de pé porque o povo tem capacidade de rir de si mesmo”. Dá o que pensar. 

Sai de Baixo é, portanto, um retrato ainda apropriado da sociedade brasileira e fidedigno do relacionamento familiar em muitos casos. Apesar desse perfil – ou talvez por causa dele -, é muito divertida e vale a pena ver ou rever.

A outra sugestão, La Casa de las Flores, é a terceira série original da Netflix México, depois de Club de Cuervos e Ingobernable. A narrativa traz diversos ingredientes comuns a muitas famílias. Tem gente disposta a manter as aparências a qualquer custo; sensatos e malucos-beleza que por vezes alternam esses perfis, gays de vários estilos, gente autoritária e dona da verdade, enfim, uma fauna completa no bojo da qual a hipocrisia encontra lugar de destaque. Mas há também o amor e a verdade, esta vindo à tona a duras penas. Eis a apresentação da Netflix: “Nesta comédia sombria, uma matriarca rica tenta manter a fachada de perfeição de sua família depois que a amante de seu marido expõe seus segredos sujos”. Definição bem precisa para “A casa das flores”, floricultura pertencente aos De la Mora que dá nome à série, dentro e em torno da qual gira toda a história. 

Além do enredo fascinante e bem conduzido, com reviravoltas que o mantém invariavelmente capaz de manter a audiência interessada, a cenografia e o figurino da série são também um primor, assim como a abertura, uma das minhas preferidas. Lançada em 2018 e encerrada em abril deste ano, a trama aborda temas polêmicos, levantando reflexões muito bem-vindas sobre tabus em geral, a exemplo de suicídio, homossexualidade e transexualidade, intrigas e fofocas, caminhos espirituais tortuosos, entre outros. Tudo com o molho do humor e, felizmente, numa narrativa mais afeita à aceitação do que ao julgamento, crescente nos últimos tempos. É entretenimento da melhor qualidade. 

La Casa de las Flores é dirigida pelo seu criador, o mexicano Manolo Caro, também roteirista  cuja obra frequentemente é protagonizada pela atriz Cecília Suarez. Ela interpreta minha personagem favorita na série, a primogênita da família, Paulina de La Mora.  Primeira atriz de língua espanhola a ser indicada ao Emmy Internacional, Cecília Suarez torna Paulina encantadora por várias razões, cito duas: uma cadência de fala muito singular e o revés na vida amorosa de que se vê defronte, bem surpreendente e de solução mais ainda. Não posso contar qual, porque seria um tremendo spoiler.  Mas todo o elenco mostra muito bem a que veio, numa história onde praticamente nada é o que parecia ser. 

Por fim, deixo a sugestão de ninguém menos que Madre Teresa de Calcutá: “O que você pode fazer para promover a paz mundial? Vá para casa e ame sua família”. Pode não ser sempre tão fácil, mas vale a pena tentar. 

Para maratonar:
Sai de Baixo – total de 55 episódios, todos reunidos em uma só temporada, disponível na Globoplay; 

A Casa das Flores – três temporadas, total de 33 episódios, disponível completa na Netflix.

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