Entre Bem e Mal, nem tudo é o que parece  | Levando a Série | F5 News - Sergipe Atualizado

Entre Bem e Mal, nem tudo é o que parece 
Duas séries abordam essa visão maniqueísta - e a destroçam com muito humor
Blogs e Colunas | Levando a Série 12/09/2020 13h00 - Atualizado em 12/09/2020 15h27

A eterna luta entre o bem e o mal está no cerne de duas ótimas séries, muito apropriadas para esse momento tão conturbado, já que conseguem unir inteligência e leveza em fartas doses: The Good Place (O Bom Lugar), na Netflix, e Good Omens (Belas Maldições), no Amazon Prime Vídeo. Ambas as narrativas partem dessa visão maniqueísta... e a destroçam. 

The Good Place está disponível por completo na Netflix. Confesso que não me encantei com a primeira temporada; ao contrário, estava propensa a dispensar a série, ainda que a história tivesse me agradado em vários aspectos. O percalço – bem particular, assumo – foi que a protagonista Eleanor Shellstrop, encarnada pela atriz e cantora americana Kristen Bell, despertou em mim mais irritação do que qualquer outra coisa. Em resumo, a encarei como uma otária e tanto, aquele tipo de pessoa cujo mundo gravita em torno do próprio umbigo e o resto que se dane. Ao comentar essa impressão com minha caçula, ela entendeu meu incômodo; porém, mais adiantada nos episódios, afirmou convictamente: “prossiga, que fica cada vez melhor”. Exato, só melhora. E, ao contrário de muitas séries cujos finais foram uma decepção absoluta – Game of Thrones é meu melhor exemplo –, The Good Place vai num crescendo de qualidade que jamais decai.  Amei a conclusão da história, me emocionei bastante, feliz de constatar que qualquer ficção de qualidade tem o potencial de trazer em si aprendizados e reflexões significativas, desde que as pessoas estejam propensas a isso. 

Muito em resumo, para não arriscar spoiler: Eleanor morre e se vê no “lugar bom” sem ter os devidos méritos para tal acolhida.  Fica claro que se tratou de um erro; na verdade ela foi confundida com outra mulher, uma homônima, esta sim merecedora. O anfitrião e gerente daquele suposto paraíso, Michael, abrilhanta a série em nível estratosférico. O ator norte-americano Ted Danson – familiar para quem assistiu CSI, o que não é meu caso – simplesmente arrasa nesse papel. E está muito bem acompanhado, todo o elenco principal esbanja talento. The Good Place investe em questões éticas e filosóficas, de forma muito didática e interessante, por intermédio das aulas solicitadas por Eleanor a sua suposta alma gêmea, nos parâmetros divinos – o professor Chidi Anagonye, interpretado pelo ator William Jackson Harper. Coisas muito loucas acontecem, mas, de volta à questão crucial, nada era o que parecia ser; Bem e Mal são relativizados sob as condicionantes de cada existência.  

Mas depois eu assisti Good Omens, como dito, igualmente detonando o entendimento de que existe uma verdade absoluta nessa dicotomia. E foi paixão ao primeiro episódio. Em linhas gerais, um anjo e um demônio caminham pela Terra há milênios e, embora respeitando na aparência a obrigação de se colocarem em campos contrários, vão descobrindo afinidades e um companheirismo impossível de assumir perante os respectivos líderes. Diante da proximidade do Apocalipse, anunciado pelo nascimento do Anticristo – no qual acontece muita confusão –, eles se unem para literalmente evitar o “Fim dos Tempos”. Ocorre que ambos se acostumaram à vida entre os mortais. Mais que isso, passaram a usufruir dos prazeres mundanos; o anjo especialmente apreciador da alta gastronomia, o que rende diálogos incríveis. Assim, perder a residência na Terra nem de longe os interessava.  

Em apenas seis episódios, a série acompanha essa insólita e divertida união do anjo Aziraphale –  interpretado pelo ator britânico Michael Sheen – com o demônio Crowley, a serpente que tentou Eva e uma atração à parte na pele do escocês David Tennant. Talvez você não o associe a algum personagem, mas se apreciou a saga Harry Potter, certamente se lembra do ator como Bartô Crouch Jr. no filme do Cálice de Fogo. Para os fãs da longeva série britânica Dr. Who, fica mais fácil: Tennant foi o décimo Doutor, de 2005 a 2010, papel que rendeu a ele vários prêmios. 

Good Omens é baseada no livro homônimo escrito em 1990 pelos britânicos Neil Gaiman e Terry Pratchett, o que provavelmente explica o fato de a produção da Amazon ter contado com a parceria da BBC Studios. Gaiman assina a série como roteirista e produtor executivo, cumprindo a promessa de ser fiel à história original, feita a Pratchett pouco antes da morte deste em 2015, aos 66 anos, em consequência da doença de Alzheimer. Não li o livro, mas a série me valeu cada segundo em frente à TV. Na busca por impedir a derradeira batalha entre o Céu e o Inferno, muitas aventuras se desenrolam, alimentadas por diálogos inteligentes e libertários, essência da narrativa.

The Good Place e Good Omens – esta em muito maior escala – não são sugestões para a parcela da potencial audiência que tende a encarar como ofensivas ficções cujos encaminhamentos não se ocupam de dogmas religiosos. Sinceramente, jamais observei em nenhuma das duas algo que sequer me soasse como desrespeitoso. Mas estou falando por mim.

Porém, reforço a advertência com um trecho da ótima entrevista que o coautor de Good Omens, Neil Gaiman, deu ao portal Adoro Cinema: “Eu tomei uma decisão importante desde o início. Eu disse: ‘OK, Adão e Eva, no Jardim do Éden, não serão brancos’. Então, desde os primeiros cinco minutos, você tem que lidar com a voz de Deus, que é uma mulher interpretada por Frances McDormand, e você tem que lidar com Adão e Eva negros. Isso são apenas os primeiros cinco minutos. Você pode parar de assistir agora. Se ficar chateado ou ofendido, invente uma desculpa para parar de assistir agora porque você provavelmente vai ficar muito mais ofendido com outras coisas mais tarde, incluindo um anticristo de 11 anos de idade, que na verdade é um bom menino. Você sabe que vem coisa muito pior depois. A mensagem chega bem cedo; então, as pessoas foram avisadas!”.

Por fim, peço licença para filosofar. Tão logo me ocorreu abordar esse contexto maniqueísta de Bem versus Mal, recordei o que classifico como um ensinamento, por me tocar profundamente. A mensagem é atribuída a um líder indígena, o que não fui capaz de realmente confirmar, mas a meu ver sintetiza à perfeição o processo das escolhas existenciais:

Dentro de mim, existem dois lobos:
O lobo do ódio e o lobo do amor.
Ambos disputam o poder sobre mim.
E quando me perguntam qual lobo é vencedor, respondo:
Aquele que eu alimento.

Para maratonar: 

The Good Place: quatro temporadas, total de 53 episódios, disponível completa na Netflix
Good Omens: uma temporada, total de seis episódios – aparentemente finalizada, mas nunca se sabe ao certo, já que depende da acolhida, leia-se: lucratividade –, disponível completa na Amazon Prime Video
 

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