Excelentes diálogos mostram como alguns ditos “inadequados” se dão bem  | Levando a Série | F5 News - Sergipe Atualizado

Excelentes diálogos mostram como alguns ditos “inadequados” se dão bem 
“Two and a half men” e “The Big Bang Theory” exploram a chamada comédia de costumes
Blogs e Colunas | Levando a Série 04/12/2020 16h00 - Atualizado em 05/12/2020 09h18

Duas séries que se situam entre os maiores sucessos mundiais do gênero têm em comum cenários extremamente simples – a maior parte do enredo de ambas se desenrola em ambientes internos, alheias a cenas espetaculares, daquelas com multidões de figurantes, por exemplo. O que as torna tão sedutoras é essencialmente a qualidade dos diálogos, dentro da proposta que caracteriza a chamada comédia de costumes. Embora esse conceito seja originário do teatro, as produções televisivas se apropriaram com eficácia dele e as sugestões a seguir são ótimos exemplos de um olhar sarcástico e divertido sobre a sociedade contemporânea, com seus valores e dores.  Entretanto, o que realmente conecta Two and a half men e The Big Bang Theory é a assinatura do produtor executivo e escritor Chuck Lorre, criador de ambas, com parceiros. Dotado de um toque de Midas nesse nicho da indústria do entretenimento, só na CBS, rede que lidera a audiência nos EUA, ele responde por quatro das cinco séries hoje sendo por ela produzidas. E levou sua argúcia ao rol dos originais Netflix, com a genial O Método Kominsky, que já foi alvo de análise nesta coluna.

Two and a half men é a cara de Chuck Lorre e tem como cocriador Lee Aronsohn. O set de filmagem é quase sempre a casa do protagonista Charlie Harper – o ator Charlie Sheen praticamente sendo ele mesmo -, na praia californiana de Malibu, endereço de várias celebridades hollywoodianas. O forte da série está nas relações que gravitam em torno dele, cada uma mais louca do que a outra. A história começa com o único irmão de Charlie, o caçula Alan Harper – papel que catapultou a carreira e o salário do ator Jon Cryer – sendo defenestrado pela esposa, Judith (Marin Hinkle), quando ela pede o divórcio. Alan então procura abrigo “temporário” na sensacional casa de Charlie e nunca mais larga o osso, fato a lhe granjear a alcunha de “esponja”, o nosso equivalente a parasita, em bom Português.

Alan e Judith tiveram um filho, Jake (Angus T. Jones), que a partir da mudança do pai, e só então, já com 10 anos, começa a se relacionar com o tio. Ocorre que esse tio é um exemplo dos mais questionáveis, digamos assim. Embora muito bem sucedido como compositor de jingles, num tempo em que esse trabalho rendia status e dinheiro, Charlie é a personificação do hedonismo. Bebe muito e transa a cada aceno de parceira interessada, sem qualquer disposição para o romance. É sexo casual, zero compromisso, e pronto. Alan se ressente da qualidade de vida do irmão mais velho – ainda que dela muito se aproveite -, já que, em tese, sua caminhada segue padrões éticos, enquanto Charlie não está nem aí. Faz o que lhe dá na telha, sem um átimo de culpa, pouco se lixando para os julgamentos alheios. O garoto Jake – que virou um rapaz ao longo da série – se encanta com o modus vivendi do tio, para desespero de um Alan cheio de inveja e perdendo terreno na educação do filho. 

A governanta da casa, Berta – papel inesquecível de Conchata Ferrell, falecida em outubro passado, aos 77 anos – é mais um ingrediente peculiar nessa salada comportamental. Totalmente identificada com a vida loca do patrão, fã do espírito libertário que é também o dela, Berta é pura autenticidade, ainda que não raro no patamar da grosseria e do mau humor, em geral direcionados a Alan. Eventualmente, também sobra para Charlie, que a tudo sucumbe porque, a rigor, ela é uma das poucas pessoas a o amar exatamente do jeito que ele é. 

Por fim, há outras duas mulheres na série no melhor estilo Chuck Lorre. A mãe de Charlie e Alan – Evelyn Harper, interpretada à perfeição pela atriz Holland Taylor – é um horror... e incrivelmente divertida. Despojada de qualquer instinto maternal, sempre colocou os próprios interesses acima dos da prole e, pior, cuidou de apequenar as vitórias dos dois filhos, na base da crueldade e do sarcasmo. São recorrentes as cenas nas quais ambos fogem dela, ou a confrontam, em especial Charlie, que chega a recebê-la com um “oi, Satã”, dentre outras classificações de igual sentido. Acreditem, ela fez por onde e alegremente transmuta as cobranças dos filhos em renovadas manipulações, daí porque a audiência assimilou facilmente essa relação a detonar um dos mais poderosos arquétipos da humanidade, o da mãe devotada, quase uma santa. O oposto de Evelyn Harper.  

Outra coadjuvante ímpar é Rose (Melanie Lynskey), herdeira ricaça e vizinha de Charlie. Obcecada por ele depois de uma relação casual, quando negligenciada passou a operar várias vinganças – de novo, cada uma mais tresloucada que a outra. Rose se torna perseguidora de Charlie, no sentido que daria cadeia, se fosse o caso. Apesar de tudo, os ex-amantes se tornam amigos; no contexto da série, não surpreende, normal. 

Two and a half men está disponível por completo no Amazon Prime Vídeo, mas eu e meio mundo consideramos decadentes as temporadas a partir da oitava – esta a última em que Charlie Sheen foi o protagonista. Depois de abusar da paciência de Chuck Lorre, que já tinha aturado os abusos do ator em álcool e drogas, o diretor o tirou do elenco, uma quizumba a ganhar o noticiário voltado a entretenimento. A história foi então adaptada, de resto com os mesmos personagens e com um novo astro – o ator Ashton Kutcher, que deu conta do recado como o jovem bilionário Walden Schmidt. Porém, no entendimento da maioria – audiência e críticos – o Charlie Harper do xará Sheen, um “galinha incorrigível”, fazia o enredo muito mais engraçado. 

Relacionamentos e ótimos diálogos são também o alicerce da segunda sugestão: The Big Bang Theory, outro sucesso de Chuck Lorre, como já dito, este em coautoria com Bill Prady. Embora situada no círculo nerd, para se divertir com a série você não precisa, por exemplo, saber da rivalidade entre as sagas Star Wars e Star Trek – na tradução, Guerra nas Estrelas e Jornada nas Estrelas, respectivamente. A história mostra o cotidiano de quatro amigos, todos jovens cientistas e colegas pesquisadores na mesma universidade: a não fictícia Caltech, em Pasadena, no estado da Califórnia. Os físicos Sheldon Cooper (Jim Parsons) e Leonard Hofstadter (Johnny Galecki), que dividem um apartamento; o engenheiro aeroespacial Howard Wolowitz (Simon Helberg), cuja estereotipada mãe judia o mima como se criança ainda fosse, e o astrofísico Rajesh Koothrappali (Kunal Nayyar), um indiano rico e sensível que não consegue falar na presença de qualquer mulher. Essa dificuldade é transposta se ele ingerir uma gota de bebida alcoólica, o que rende várias cenas impagáveis. 

A série começa com Sheldon e Leonard conhecendo a nova vizinha, que se mudara para o apartamento em frente ao deles – a linda Penny (Kaley Cuoco), garçonete por necessidade, enquanto aposta no sonho de uma carreira como atriz. De imediato, Leonard se apaixona por ela, que funciona como um contraponto muito sagaz ao quarteto mega inteligente com o qual passa a conviver. Eles transitam por searas incompreensíveis para Penny – e a maioria das pessoas –, porém, em paralelo, a garçonete incapaz de entender grande parte do teor das conversas daqueles cientistas é muito superior na tarefa de lidar com os meandros práticos dos relacionamentos e da vida mundana em geral. 

Sheldon Cooper é o personagem mais carismático, um sem-noção adorável – de novo, a meu ver e no de meio mundo. Um gênio na Ciência e um desastre nas convenções sociais, dotado de memória eidética, arrogante sem perceber a inadequação daquele comportamento, ele encanta a audiência ao mesmo tempo que, na história, irrita os amigos.  Jim Parsons – até Big Bang de escassa notoriedade - ganhou quatro Emmy´s na categoria “melhor ator em série de comédia”, nas seis indicações a esse prêmio, para citar apenas um entre vários outros de igual relevância. Sabe aquele negócio de estar no lugar certo na hora certa? Parece ser o caso. Fez tanto sucesso que Chuck Lorre pegou o barco e criou a série Young Sheldon, baseada na infância do personagem e sobre a qual falaremos em breve. 

Ao longo das temporadas, o elenco central cresceu, com a chegada de companheiras para Howard – Bernadette (Melissa Rauch) – e, contrariando toda a lógica, para Sheldon. Nesse caso, a neurocientista Amy Farrah Fowler, interpretada pela atriz Mayim Bialik, curiosamente a única do elenco a, na vida real, ter obtido o grau de doutora, e o dela exatamente na mesma área de sua personagem.  

The Big Bang Theory é uma delícia, leve, inteligente e cheia de humor e beleza, para quem assiste de espírito aberto.  

Por fim, deixo a reflexão do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard, precursor do Existencialismo: “Ousar é perder o equilíbrio momentaneamente. Não ousar é perder-se”.

Para maratonar:

Two and a half men – 12 temporadas, das quais recomendo as oito primeiras que têm 177 episódios, disponível completa na Amazon Prime Video; 

The Big Bang Theory – 12 temporadas, total de 279 episódios, disponível completa na Globoplay.

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