‘Good Girls’ e ‘Little Fires Everywhere’: mães dispostas a tudo | Levando a Série | F5 News - Sergipe Atualizado

‘Good Girls’ e ‘Little Fires Everywhere’: mães dispostas a tudo
Enredos inteligentes mostram neuroses, meandros e agruras de manter a prole protegida
Blogs e Colunas | Levando a Série 04/06/2021 16h00

A maternidade usualmente estabelece que as mães façam qualquer coisa para manter a segurança de seus filhos e/ou filhas. Evoca-se a imagem das leoas, ferozes e atentas em seus cuidados com os filhotes, mas no âmbito das fêmeas racionais, a maioria das mães já se deparou com a realidade nua e crua: cumprir as expectativas idealizadas historicamente é uma tarefa impossível. Mães ou não, mulheres vivem as cargas e belezas inerentes à espécie humana e, como tal, dividem com os homens a premissa da imperfeição, simples assim.

As duas séries de hoje mostram, em diferentes escalas e atitudes, até onde mães podem chegar sob o argumento de “proteger a prole” e, por extensão, a família. A primeira é Good Girls (Boas Meninas), na Netflix; a segunda, Little Fires Everywhere (Pequenos incêndios por toda parte), disponível na Amazon Prime Video.

Good Girls chegou a ser chamada de “versão feminista de Breaking Bad” – já comentada aqui – e faz certo sentido. Com um câncer se aproximando do estágio terminal, o professor e químico Walter White começa a produzir metanfetamina no propósito de garantir o bem estar financeiro da esposa e do filho, após sua morte. As motivações do trio de amigas protagonistas em Good Girls não se encaixam em tal extremo, mas, à semelhança do antiherói de "Breaking Bad", a necessidade urgente de um bocado de dinheiro, comum às três mulheres, funciona como o estopim das aventuras e agruras que se sucedem na série.

As irmãs Beth (Christina Hendricks) e Annie (Mae Whitman) compartilham uma melhor amiga desde a adolescência, Ruby (Retta). As três cresceram unidas, se auxiliando mutuamente em todos os sentidos e agora encaram, outra vez juntas, um quadro desolador. A história começa com Beth sob risco de perder a própria casa devido a atrasos no pagamento da hipoteca, por culpa do marido Dean (Matthew Lillard), com quem tem quatro filhos na iminência de virarem sem-teto. Annie, sua irmã mais nova, precisa provar condições de manter a custódia da filha, Sadie, que o ex-marido tenta obter judicialmente. 

Porém, a medalha de pior situação vai para Ruby, que vive um inferno rotineiro para pagar o tratamento de sua filha Sara, acometida por sérios problemas renais.  Aqui cabe um parênteses: assistindo ao que sofrem Ruby e o marido Stan (Reno Wilson) no empenho desesperado em manter Sara viva, me flagrei diversas vezes agradecendo a existência do nosso SUS. Lá em Detroit, no estado norteamericano do Michigan, onde se passa a história, saúde é um negócio como outro qualquer, dane-se quem não puder pagar seus altos custos. 

O jeito encontrado pelo trio de amigas para superar os respectivos percalços financeiros é assaltar o supermercado onde Annie trabalha como caixa e cujo gerente ela execra – com toda razão, destaque-se. O papel daquele chefe abominável, Boomer, é muito bem cumprido pelo ator David Hornsby, digo isso pela facilidade e rapidez com que eu mesma detestei o personagem. As mulheres adentram no mundo do crime achando que a experiência se esgotaria ali, sequer usam armas de verdade no assalto. Porém, circunstancialmente, ele as leva ao desastroso contato com o gângster local de alcunha Rio (Manny Montana). Tudo isso está no trailer da primeira temporada, não é spoiler.

Good Girls complica a classificação em um só gênero – vai do drama à comédia em instantes, não raro na mesma cena. As três amigas, cujas vidas estavam imersas em descontrole antes do assalto, veem tudo piorar a partir dele.  Como em Ozark, já recomendada aqui, se mostra uma tarefa hercúlea operar atividades criminosas ao mesmo tempo em que se procura manter as aparências de pilares morais diante da sociedade, caso de Beth e Ruby, respeitáveis esposas e mães. Uma curiosidade: tão logo pus os olhos sobre o marido de Beth, Dean, me lembrei do ator que o interpreta, Matthew Lillard, na pele do divertido Salsicha, nos dois filmes live action do fofo Scooby Doo, de 2002 e 2004.

De volta ao trio de mães criminosas, Annie já estava à margem dos parâmetros de moral impecável, como divorciada desfrutando livremente dos prazeres mundanos. Além disso, outro aspecto que tenderia à reprovação de muitos é a qualidade de seu apoio à cria, dentro de uma circunstância que não posso antecipar. Essa questão em nada interfere na trama central, porém a naturalidade com que é tratada em Good Girls encorpa o maior mérito da série: mostrar a humanidade em suas múltiplas e insondáveis nuances.  E o faz com leveza e crueza, combinação a requisitar especial talento.

Little Fires Everywhere (Pequenos incêndios por toda parte), disponível na Amazon Prime Video, opera sobre vários tipos de relacionamentos e suas complexidades, mas o entre duas mães surge como fio condutor. Baseada no livro homônimo da norte-americana Celeste Ng, lançado em 2017, a história teve adaptação a cargo da emissora Hulu – braço da Walt Disney Company –, que a exibiu de março a abril de 2020. Situada na  cidade de Shaker Heights, no estado de Ohio, onde a escritora cresceu, a trama aborda o encontro circunstancial entre duas famílias de vivências e padrões sociais completamente diversos.

De um lado está Elena Richardson, um pilar daquela comunidade plenamente organizada, mantenedora dos típicos valores enaltecidos no "american way of life" (modo de vida americano). Meu interesse pela minissérie – já que se esgota nos oito episódios de uma temporada - foi despertado pela intérprete de Elena, a esposa, mãe de quatro adolescentes e jornalista que dá conta de tudo aparentemente no nível da perfeição: Reese Witherspoon. Muita gente vai se lembrar dela como a patricinha Elle Woods, que vai cursar Direito no primeiro filme “Legalmente Loira”, de 2001 e, no segundo, já advogada, de 2003. Aprecio ambos, mas Reese se mostrou muito além do talento para comédias. Ganhou o Oscar de melhor atriz em 2005, pelo papel de June Carter Cash, esposa e parceira musical do idolo country Johnny Cash, no filme biográfico Walk the Line (Johnny & June, no Brasil). E dez anos depois, em 2015, concorreu na mesma categoria ao Oscar por Wild (Livre), desta vez sem levar a estatueta. Resumindo, quando me deparei com Little Fires Everywhere, a atração foi imediata: “tem a Reese, vou assistir”. 

Num contraponto à “perfeita” Elena Richardson, surge na idílica cidade de Shaker Heights a artista Mia Warren, com sua filha adolescente Pearl (Lexi Underwood). Enigmática quanto ao próprio passado e carregando certo desprezo pelos valores do status quo, Mia aluga uma casa de propriedade dos Richardson, circunstância a resultar no convívio entre as famílias sobre o qual se ergue, paulatinamente, a relação um tanto neurótica das duas mães.   

No livro, Celeste Ng não especifica que Mia Warren seja negra – ela é situada como uma mãe solteira da classe trabalhadora, apenas. Mas na adaptação televisiva as questões raciais entram em cena fortemente, por uma aposta da própria Reese Witherspoon, que adquiriu os direitos sobre a obra literária através de sua produtora, Hello Sunshine. Ela convidou a atriz negra Kerry Washington a interpretar Mia, ideia apreciada enfaticamente pela escritora Celeste Ng, norte-americana de ascendência chinesa que disse ter cogitado esse perfil para a personagem, mas desistiu. “Eu não sentia que poderia imaginar adequadamente a experiência de uma mulher negra”, declarou em uma entrevista. 

A loira e rica Elena Richardson, matriarca de uma família tradicional, não parece nem um pouco preconceituosa. Orgulha-se de seus pais terem ajudado a promover a integração racial na comunidade de Shaker Heights – característica verdadeira que levou a família de Celeste Ng a escolher se mudar para lá, quando a futura escritora tinha dez anos. Fora isso, a filha mais velha de Elena, Lexie (Jade Pettyjohn), namora um rapaz negro, Brian (SteVonté Hart). Essa se exaure no objetivo de cumprir as expectativas da mãe, com sucesso até certo ponto, enquanto a caçula, Izzy (Megan Stott), é uma decepção contínua, mergulhada em revolta pela hipocrisia que fareja naquele lar e em tristeza pelo evidente desamor da mãe por ela. Completam a prole de Elena com o marido Bill (Joshua Jackson) os dois filhos rapazes, Trip (Jordan Elsass) e Moody (Gavin Lewis), ambos encantados por Pearl - o que contribui para esquentar as coisas.

A suposta grandeza que a matriarca busca transmitir se revela questionável logo no início da minissérie, quando Elena vê Mia Warren pela primeira vez, dormindo com a filha no carro em um estacionamento – e chama a polícia. O mais impactante, porém, ao menos para mim, foi a reação de Mia à aproximação dos policiais, ela acorda Pearl suavemente e a orienta num tom de cautela aprendida por força da experiência: "Mãos visíveis, querida, ok?".

Ao longo dos oito episódios de Little Fires Everywhere, as vidas das duas mães entram em rota de colisão de formas e por razões diversas, numa quizumba que se estende às respectivas famílias, afetando a todos os seus membros em variados graus. O suporte teórico para atitudes tresloucadas de ambas as partes inclui “proteção” à prole, o que na prática nem chega perto do êxito ou de se mostrar minimamente justificável. Uma ótima história, farta em reflexões para pessoas propensas a enxergá-las. 

Por fim, deixo uma frase atribuida a Sócrates que se adequa incrivelmente aos contextos das duas séries: “O caminho mais grandioso para viver com honra neste mundo é ser a pessoa que fingimos ser”.

Para maratonar:

Good Girls – três temporadas, total de 34 episódios, quarta já em gravação, disponível na Netflix;

Little Fires Everywhere – uma temporada de oito episódios, disponível na Amazon Prime Video.

 

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