‘Ozark’ e ‘Sneaky Pete’ reavivam universo marginal presente em Breaking Bad | Levando a Série | F5 News - Sergipe Atualizado

‘Ozark’ e ‘Sneaky Pete’ reavivam universo marginal presente em Breaking Bad
Ambas exploram meandros de vidas onde a opção pelo crime sai totalmente do controle
Blogs e Colunas | Levando a Série 14/05/2021 17h16 - Atualizado em 14/05/2021 18h44

Na recente coluna sobre The Office (O Escritório), cito que a série original mais assistida nos Estados Unidos em 2020 foi Ozark, conforme levantamento do serviço de audiência de streaming da Nielsen, divulgado em janeiro deste ano. Ela já estava na minha lista e esse dado me levou a priorizá-la – iniciativa feliz, como se verá. 

Produção original da Netflix, Ozark não se inspira oficialmente em fatos, mas fica óbvia sua conexão com a realidade. Nela inexistem monstros lendários, criaturas míticas, super-heróis e supervilões, entre outros personagens desse nicho fantasioso que eu tanto aprecio. Na série, contravenções usuais no mundo real – a saber, lavagem de dinheiro e tráfico de drogas - são o tecido da narrativa, enquanto a agulha que a costura é o potencial saldo de se envolver com atividades criminosas. Para além dos aspectos morais e éticos, e do risco concreto de acabar preso ou morto, o forte da trama é a impossibilidade de saltar fora dessa vida marginal, mesmo querendo e tentando fazê-lo.

 Ozark vem sendo frequentemente comparada ao sucesso Breaking Bad, já recomendado aqui. Isso ocorre principalmente porque ambas as séries têm como protagonistas anti-heróis brancos e de meia idade, única semelhança significativa, a meu ver. Para quem sente saudades do professor, químico e depois criminoso Walter White, personagem principal de "Breaking Bad", a melhor pedida é a segunda sugestão de hoje, da qual falaremos mais à frente - Sneaky Pete (Pete Sorrateiro), disponível na Amazon Prime Video.

Voltando a Ozark, o consultor financeiro Martin “Marty” Byrde reside com a família em Chicago, onde entremeia trabalho honesto com a lavagem de dinheiro para um cartel de drogas mexicano. Sob circunstâncias nada agradáveis, ele se vê obrigado à mudança para uma comunidade no lago Ozarks, atração turística existente no estado do Missouri, situada nas Montanhas Ozark. Lá, precisa dar continuidade às operações de interesse dos chefes, bandidos de alta periculosidade, num processo cujos percalços compõem e sustentam a narrativa da série. E são muitos, a começar das necessárias associações que Marty precisa fazer com criminosos locais, numa escalada ininterrupta de adversidades a serem transpostas.  

O casal Byrde é interpretado com excelência pelo ator Jason Bateman, que dirigiu vários episódios, e pela atriz Laura Linney, a Wendy, ambos dotados de extensa filmografia. Abro um parênteses para dizer que nunca a esqueci como a esposa farsante de Jim Carrey em “O show de Truman”.

O elenco, a propósito, amplifica o cacife de Ozark. Além desse par já consagrado, uma das criminosas que se associa a Marty, Ruth, me encantou especialmente pelo carisma e enorme talento de sua intérprete, a jovem Julia Garner. Justifica-se que o papel tenha garantido a ela dois Emmy consecutivos como “melhor atriz coadjuvante em série dramática”, nos anos de 2019 e 2020 – neste último, a terceira temporada de Ozark recebeu 18 indicações ao prêmio.

Ruth é da família Langmore, que se diz amaldiçoada pela falta de oportunidades, justificativa usual para o ingresso em uma sucessão de contravenções variadas. Sem detalhes, os Langmore conseguem ser um tanto melhores do que o casal Snell, já avançado em idade e em experiência criminosa, com quem Marty também precisa vir a lidar.  A esposa Snell é doida de pedra, e mais não posso dizer.

Um dos muitos méritos de Ozark é a hipocrisia desnudada. Os Byrde têm dois filhos adolescentes, Charlotte e Jonah, família capaz de transparecer uma imagem respeitosa, adequada à moral de classe média norte-americana, não muito diferente da brasileira. O casal Snell, mais ainda. Seus ancestrais já viviam naquela região, algo que orgulha a ambos e cria uma eficiente fachada para os negócios escusos que promovem, enquanto posam de esteios daquela comunidade. Já os Langmore, que moram precariamente em trailers, são rotulados como “escória” mesmo e pronto.

Um dos personagens tenderia a receber facilmente a classificação de “mocinho” – o agente do FBI Roy Petty (Jason Butler Harner) –, porém ele está mais para um psicopata, por vezes soando tão maléfico quanto os bandidos a cuja captura se lança em grau obsessivo. Reside aí outro mérito de Ozark: oportunizar uma leitura contextualizada das ações de cada componente da história, questionando a dicotomia rasa do bem versus o mal, a exemplo do que fazem, desta vez comicamente, duas incríveis séries já recomendadas aqui: The Good Place e Good Omens.

O protagonista Marty Byrde ilustra à perfeição os meandros existenciais que dificultam aceitar bovinamente essa ótica maniqueísta. O consultor sucumbiu à sedução de usar seu domínio sobre operações financeiras para a lavagem de dinheiro sujo, mas isso não o torna um ser humano abominável por completo. Pegou o caminho errado, sim, com certeza, o atalho desonesto que tantos escolhem na vida real – inclusive uns muito ricos que ambicionam ficar mais ricos -, porém, ao longo da história de Ozark, ele demonstra bom coração. Nada que justifique alguns de seus atos, que fique bem claro. O mesmo se aplica à Ruth Langmore, que cresceu sob a péssima influência de um pai abjeto, lutando contra um mundo que nunca lhe dedicou qualquer misericórdia e, com isso, aprendeu a se blindar rosnando palavreado chulo e aparentando ser muito mais dura do que de fato é. Essa ao menos tem alguma desculpa para o enveredar pelo crime.

Em junho do ano passado, a Netflix postou: "Quem ainda não se recuperou das tretas de Ozark e da família Byrde, dá um jeito aí porque logo vem a quarta e última temporada”.  Um alívio para mim, que ainda não iniciei a terceira, porém conhecedora da frustração gerada pelo cancelamento de séries a me fascinarem, como o objeto de análise da coluna anterior a esta, Sense8.

Lembra o que falo lá no início? Está com saudades do Walter White de "Breaking Bad"? Vá assistir Sneaky Pete (Pete Sorrateiro). O ator que interpretou o complexo professor em BB, Bryan Cranston, assina a criação da série em parceria com David Shore, que responde por outro primor de qualidade neste tipo de entretenimento – House, também já alvo de análise desta coluna.

Bryan Cranston também atua em Sneaky Pete, num papel à sua altura: Vince, dono de um cassino cuja operação é ilegal, já que clandestina. Fora isso, ele não admite qualquer tipo de trapaça de clientes para com a casa - o esperado -, e usa a mesma lógica no sentido inverso. Tal ética, digamos assim, não o absolve da violência que promove, enquanto faz o que torna seu personagem singular, exercita seu pendor para a contação de histórias. Trata-se de algo em geral repleto de beleza e inocência, mas as narrações de Vince são reais e, via de regra, pautadas em práticas violentas. O estilo caricato do personagem me trouxe à lembrança o de outros vilões também afeitos à dramaticidade: Lex Luthor, o arqui-inimigo do Super Homem; e Jim Moriarty, o do detetive britânico Sherlock Holmes, cuja releitura da BBC já foi recomendada aqui. À semelhança de Vince, ambos não se contentam em apenas levar à frente suas operações criminosas, é preciso ser do mal com mise-en-scène.

A fama de que se embebe Bryan Cranston, e a associação por tabela com Ozark, me levaram a começar pelo coadjuvante, em vez de pelo personagem principal, o Pete, sujeito sorrateiro que dá nome à série, original da Amazon. O vigarista é interpretado por Giovanni Ribisi, ator norte-americano de grande experiência em seriados e filmes. Se você viu Friends – outra recomendada aqui – vai se lembrar dele como Frank Jr., o irmão da Phoebe. No outro extremo, ele é o humano abominável que administra a estação dos terráqueos no planeta Pandora, cenário do profético filme "Avatar".  

Encantar as vítimas é pressuposto para dar golpes bem sucedidos e o protagonista de Sneaky Pete não foge à regra, se apresenta como um sujeito bem agradável. O golpista, de nome Marius Josipovic, se apropria da identidade de um ex-colega de cela, o Pete do título, que não se relacionava com a própria família há mais de vinte anos, informação compartilhada inocentemente. Assim, Marius fica confortável em arriscar apresentar-se como o neto desgarrado aos avós do colega, que continuou na prisão, enquanto ele saiu em liberdade condicional. O Pete verdadeiro é interpretado pelo ator Ethan Embry, atuante em muitas séries, entre as quais a ótima Grace & Frankie.

Não vou me alongar sobre Sneaky Pete porque ainda estou terminando a primeira temporada e por outro motivo: a Amazon Prime Video cancelou a série após a terceira, portanto, já me preparo para alguma dose de frustração. Ninguém entendeu nada: a história do ‘sorrateiro’ era uma das mais bem sucedidas da plataforma entre os críticos. Mantenho a recomendação porque, para mim, acompanhar as estripulias do golpista em seu conturbado projeto de prosseguir enganando uma família, e também seus embates com o gângster Vince, vem funcionando como precioso alívio às agruras da vida real.

Por fim, deixo à reflexão uma frase de George Carlin, humorista, ator e autor norte-americano notabilizado por uma visão cáustica da sociedade: “A honestidade pode ser a melhor política, mas é importante lembrar que, aparentemente, por eliminação, a desonestidade é a segunda melhor política”.

Para maratonar:

Ozark – três temporadas, total de 30 episódios, disponível na Netflix, que já confirmou a quarta;

Sneaky Pete – três temporadas, total de 30 episódios, disponível na Amazon Prime Video.

 

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