Poderes dedutivos e personalidades fortes contra o crime e a doença | Levando a Série | F5 News - Sergipe Atualizado

Poderes dedutivos e personalidades fortes contra o crime e a doença
“Sherlock” da BBC e “House” criam deliciosas teias de inteligências e vaidades
Blogs e Colunas | Levando a Série 13/11/2020 16h00 - Atualizado em 14/11/2020 11h11

Recentemente, a chegada do filme “Enola Holmes” à grade da Netflix despertou um novo interesse em Sherlock Holmes, o genial detetive inglês criado pelo médico e escritor Arthur Conan Doyle em 1887. Protagonista de mais de 50 contos, o personagem clássico da literatura britânica – quiçá mundial – viveu no Brasil um papel triste: foi o responsável por colocar na vitrine a falta de bagagem cultural vigente no país. Em 29 de setembro, Sherlock Holmes ficou entre os temas mais comentados do Twitter (os trending topics) por um motivo lamentável: a surpresa dos internautas ante ao fato de que o mais célebre detetive da ficção nunca existiu – exatamente a razão de se enquadrar no conceito de ficcional. Presumo que os agora informados chegaram a essa conclusão ao pesquisar a suposta irmã caçula de Sherlock – a Enola Holmes do filme –, jamais citada na obra original.  De certo só se sabe que os poderes dedutivos e de observação do cirurgião Joseph Bell, professor de Conan Doyle na Universidade de Edimburgo, o inspiraram no processo de conceber seu personagem a entrar para a história.

Oportunidades não faltam para mergulhar nesse universo ficcional, embora com a ressalva de que quase todas investiram em adaptações, sobretudo no propósito de modernizar as tramas. No campo das séries, uma aposta ousada se observa em Elementary. Nela, o médico John Watson, parceiro do detetive em muitas aventuras e uma espécie de cronista de suas investigações bem sucedidas, virou a doutora Joan Watson, interpretada pela atriz Lucy Liu, norte-americana filha de imigrantes chineses. Nada contra, zero incômodo, mas eu gosto mesmo é de Sherlock, a série da BBC disponível na Netflix. Primeiro, porque leva a assinatura da BBC, um patrimônio britânico como o personagem central.  Segundo, porque o protagonista é interpretado pelo ator Benedict Cumberbatch, de quem sou fã de carteirinha, a meu ver uma mescla insuperável de talento e carisma.  Não por acaso sua carreira ascende rápida e continuamente. Entre vários bons momentos, foi indicado ao Oscar de Melhor Ator em 2015 por sua brilhante atuação no filme “O jogo da imitação”, excelente e disponível também na Netflix. 

Nessa versão contemporânea da BBC, Sherlock chega a se autodefinir como sociopata – uma tendência ao exagero adotada há muito pela indústria do entretenimento, talvez porque arrogância e falta de educação básica agradem ao público. O detetive de Conan Doyle era reservado, sim; muito excêntrico, com certeza; focava em suas investigações ao ponto da obsessão, correto, porém penso que andam carregando nas tintas da imagem de gênio mimado. Mas não serei eu a questionar a BBC, gostei de imediato e embarquei com tudo. A performance impecável do ator Martin Freeman, também britânico, como o doutor John Watson, e a química dele com o Sherlock de Benedict Cumberbatch, a meu ver, são suficientes para justificar o sucesso da série, criada pelos roteiristas Steven Moffat e Mark Gatiss e vencedora de diversos prêmios, fora a montanha de indicações. 

Agora passemos a House, a outra sugestão de hoje. Tenho com essa série uma experiência pessoal marcante,  que compartilho num desafio à paciência do leitor.  Eu fazia mestrado em Comunicação e em dado momento travei na escrita da minha dissertação – inferno comum à maioria dos que se metem nesse processo, ouso afirmar.  Não conseguia escrever, comecei a ficar nervosa e, nessa prostração, passei umas duas semanas praticamente deitada na cama... assistindo House. Fui à minha médica e contei o que estava acontecendo, aventei a possibilidade de eu ter alguma deficiência vitamínica ou de ferro, sei lá. Eis o que ela me respondeu: “Monica, se eu pudesse, ficaria na cama vendo House também”. Destravei, conclui meu mestrado com louvor e distinção e fui ver a série novamente nem tanto tempo depois – a desculpa era “tirar a má impressão da primeira vez”. Valeu a pena de novo.

É fundamental explicar que não se trata meramente de uma “série de hospital”, embora praticamente tudo transcorra dentro de um. É além desse rótulo. O médico Gregory House – espetáculo de interpretação do inglês Hugh Laurie – e seu relacionamento em geral tenso com a própria equipe, e com os pacientes, apresentam um recorte de agruras e belezas do lidar com outros seres humanos. Chegam a ele pessoas de todas as idades, com males cujas origens não identificadas justificam que se busque o genial chefe do setor de diagnósticos do fictício Princeton-Plainsboro Teaching Hospital, na cidade de Princeton, estado de Nova Jersey, nos EUA. O talento de House atrai muitos recursos para a casa de saúde, o que leva até a administradora e reitora Lisa Cuddy (Lisa Edelstein) a engolir não só seu comportamento antissocial, como também as concessões à ética médica feitas por ele, o que inclui, por exemplo, invadir as casas de pacientes.  

Mas o que o detetive de Conan Doyle tem a ver com Gregory House? Tudo. O próprio David Shore, criador do médico tão brilhante quanto grosseiro, se assume fã de Sherlock e admite uma inspiração direta. As referências são muitas, impossível citar todas, mas começam dos nomes dos protagonistas: Holmes tem pronúncia muito similar a homes, lares/casas em inglês; house quer dizer exatamente “casa”. O melhor amigo de Sherlock é o médico aposentado do Exército britânico John Watson; o de House tem as mesmas iniciais - o oncologista James Wilson -, papel notável do ator Robert Sean Leonard, que mostrou a que veio bem jovem, como o estudante Neil Perry no filme “Sociedade dos Poetas Mortos”.

A referência (ou será reverência?) mais escancarada é o endereço do médico Gregory House:  221b Baker Street, como já dito, na cidade americana de Princeton. Exatamente a morada de Sherlock e Watson em Londres, endereço que muitos admiradores da obra de Conan Doyle sempre souberam de cor – eu junto.

Outra conexão forte reside no problema que ambos enfrentam em relação ao abuso de drogas – Holmes, cocaína e tabaco; House, o analgésico Vicodin. Da mesma forma, seus respectivos amigos exercem papel preponderante na tarefa de apoiá-los, ao mesmo tempo em que tentam os livrar de seus vícios. O fato é que o médico desvenda os mais intrincados diagnósticos com o recurso de suas capacidades dedutivas e poderes de observação. Há nele também sagaz entendimento dos carretéis em que se enrosca a espécie humana – embora sob ótica um tanto amarga. Isso fez com que cunhasse frases muito apreciadas pelos fãs, a exemplo da clássica Everybody lies (Todo mundo mente), usada pelo médico para justificar sua desconfiança em relação ao que lhe respondiam os pacientes. Normal para quem os tratava com rispidez beirando a sociopatia. Aliás, as amarguras e desafios pessoais de House – de quase todos os personagens, melhor dizendo – se constituem em um ingrediente saboroso de uma história onde, como na vida real, ninguém é perfeito.

Por fim, deixo à reflexão uma frase do filósofo alemão Arthur Schopenhauer: “Talento é acertar um alvo que ninguém acerta. Genialidade é acertar um alvo que ninguém vê”.

Para maratonar:
Sherlock – quatro temporadas, total de 13 episódios, disponível na Netflix; 

House – oito temporadas, total de 177 episódios, disponível na Amazon Prime Vídeo e na Globoplay.

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