Porque é tão importante falar sobre Sense8 | Levando a Série | F5 News - Sergipe Atualizado

Porque é tão importante falar sobre Sense8
Nome do último episódio resume o espírito da série: 'O amor vence tudo'
Blogs e Colunas | Levando a Série 07/05/2021 17h30 - Atualizado em 07/05/2021 17h46

Comecei a pesquisar sobre Sense 8 em outubro do ano passado... e travei. A série expõe tantas ousadias que fiquei cabreira com narizes torcidos, confesso. “Vou espantar um tanto de leitores”, ponderei, cautelosa em não ferir suscetibilidades. Porém, cada vez mais me parece precioso falar sobre Sense8, remando contra uma maré de retrocesso visível no campo dos direitos individuais. O que me encantou foi sua história muito bem articulada e cativante, na qual os personagens tentam viver sob os próprios termos, alheios a julgamentos. Ousada é a melhor definição de Sense8, mas o cerne da história não reside em levantar bandeiras. Ao contrário, diversidade surge de forma tão pertinente na narrativa que a aprimora sem ofuscá-la. É uma das minhas séries preferidas, isso dito por alguém que assistiu a mais de uma centena - sem exagero, eu fiz uma lista.

Assim, segue uma advertência de sentido semelhante ao exposto na coluna sobre Lucifer e O Pregador. Se você, leitor ou leitora, fica chocado diante de comportamentos livres, com uma “pegação” tórrida inclusive entre pessoas do mesmo sexo, essa história não te interessa e, por favor, pule esse texto. Como acredito que qualquer forma de amor vale a pena, Sense8 me chegou como um manancial de coisas belas, repleta de expressões de amizade, de espírito libertário, de respeito ao próximo e de conexão com as respectivas verdades existenciais.  Uma ótima reflexão sobre o exercício de coragem demandado, ainda e sobretudo nos tempos atuais, simplesmente para poder usufruir do direito de buscar a felicidade a seu modo.

Aviso dado, vamos à síntese da história. O nome Sense8 é um trocadilho com os oito protagonistas da série, já que a pronúncia – “senseiti” – é bem semelhante ao que eles todos são: “sensates”, pessoas de diferentes países que se conectam mental, emocional e fisicamente. Nesse último aspecto, eles conseguem se projetar para perto uns dos outros, só ficando visíveis aos iguais, inclusive incorporando capacidades mutuamente. Exemplo: o pacato motorista e dono de van Capheus OnyAngo (Aml Ameen, na primeira temporada, e  Toby Onwumere, na segunda) vive em Nairóbi, no Quênia, num local que ilustra a miséria presente em várias nações africanas.  Numa circunstância de agressão, Capheus se defende usando o talento para a porrada da sensate Sun Bak (Bae Doona), uma economista sisuda que trabalha na mega empresa do pai e em cujas horas vagas luta em estabelecimentos do submundo de Seul, onde a sul coreana mora.

Temos ainda a indiana Kala Dandekar (Tina Desai), cientista top do ramo farmacêutico em Mumbai;  Riley Blue (Tuppence Middleton), DJ islandesa que se muda para Londres após viver uma tragédia no país natal; o alemão Wolfgang Bogdanow (Max Riemelt), morador de Berlim que envereda pelo crime depois de reagir à usual violência do pai contra a mãe; e Will Gorski (Brian J. Smith), policial em Chicago, nos EUA, eventualmente abalado pela lembrança de um assassinato que testemunhou quando garoto e cujo autor nunca foi identificado.

Sobre os dois sensates que completam a lista vale um aprofundamento, pois ambos são personagens emblemáticos de como a intolerância e o preconceito causam enorme sofrimento às vítimas de um obscurantismo moralista perverso na prática.  Lito Rodriguez (Miguel Ángel Silvestre), galã de filmes e novelas no México, resiste a “sair do armário” pelo temor justificado de perder papeis em função de sua vida afetiva. Com isso, esconde seu romance muito fofo com Hernando, interpretado pelo ator Alfonso Herrera, cuja carreira ganhou embalo contínuo desde que protagonizou a novela mexicana “Rebelde”.  Obviamente, a discrepância entre o Lito verdadeiro e a imagem que cristalizou na mídia causa frustração e tristeza, sentimentos comuns ao amado, num dilema que rende cenas fantásticas, desde sensíveis e evolutivas até as simplesmente engraçadas. Estas ocorrem em especial quando entra em cena a namorada fictícia do galã, Daniela Velasquez (Eréndira Ibarra), que o auxilia no projeto de se manter adequado às expectativas da “moral” vigente.

Deixo por último a sensate mais fascinante para mim, embora goste muito de todos: Nomi Marks, uma mulher transexual interpretada pela atriz idem Jamie Clayton. Ao exalar fragilidade e doçura, ela faz um curioso contraponto ao jeito aguerrido da namorada Amanita (a atriz inglesa Freema Agyeman), um furor de potência e obstinação capaz de revirar céus e terra para proteger a ambas. Sim, Nomi Marks é trans e lésbica, zero problema para a própria e para seu entorno libertário, mas sujeita ao inferno da condenação social, exposta sobretudo no processo de mudança de gênero. Nomi e Amanita vivem em San Francisco, na Califórnia, cidade de perfil avançado, o que facilita bastante o cotidiano delas – até tudo virar de cabeça para baixo.

O grupo dos oito “nasce” como sensate simultaneamente, a partir das conexões ativadas  pela misteriosa Angelica, personagem que mata um pouco de saudade da sumida Daryl Hannah. Embora ela funcione como “mãe” deles, a relação não se encaixa nesse rótulo, é bom que fique muito claro. Do contrário, vai parecer incesto o que acontece ao longo da série, motivo pelo qual reforçarei: os oito sensates que ela “despertou” não são “irmãos”.  

Angelica integrava outro grupo de sensates, junto com o também enigmático Jonas (Naveen Andrews), que opera para unir os novatos nesse aparente salto evolutivo da espécie humana. Ele também precisa dar conta de torná-los aptos a sobreviver na guerra contra o vilão da história: um sensate do mal que persegue, captura e mata seus iguais, de alcunha Whispers (Sussurros), interpretado pelo ator Terrence Mann.

Sense8 me mobiliza internamente de maneira singular. Fico emocionada com frequência e, não raro, quicando nas cenas de ação, muitas. Sou uma das fãs que fizeram do Brasil o país onde a série obteve com folga a maior audiência. E assinei uns três abaixo-assinados cobrando seu desfecho, quando a Netflix, do nada, resolveu a cancelar, em junho de 2017, fazendo a conta dos custos de gravações em tantos países diferentes. “Sense8 foi cancelada” ficou entre os trending topics do Twitter no Brasil e eu mesma fiquei danada da vida: a segunda temporada terminara gloriosamente, deixando aquele gosto de quero mais, a expectativa pela continuação que o streaming decidiu não haver.

À época, a vice-presidente de conteúdo original da Netflix, Cindy Holland, divulgou uma nota onde diz: "Após 23 episódios, 16 cidades e 13 países, a história de Sense8 está chegando ao fim. Ela foi tudo o que nós e os fãs sonhamos que seria: ousada, emocional, deslumbrante e muito inesquecível. Nunca houve uma série que fosse mais global, com um elenco e equipe igualmente diversificado e internacional". Concordo plenamente, embora os fãs nunca tenham sonhado com o cancelamento da série, ainda mais após uma segunda temporada cujo episódio final, repito, foi fervilhante.

A partir da repercussão negativa do cancelamento da série, a Netflix acabou fazendo um episódio final decente, com mais de duas horas, entregando ao público uma despedida à altura da mágica de Sense8. O público brasileiro, fiel e operoso no sentido de obter um desfecho para a saga dos oito sensates, já se vira brindado com a gravação de cenas em São Paulo, no decorrer da Parada LGBT, em 2016.

Com chave de ouro, a Netflix realizou também na capital paulista, em 2017, o evento “Sense8 Juntos Até o Fim”,  no Memorial da América Latina, onde 800 fãs assistiram à pré-estreia do especial ao lado dos atores Tina Desai (Kala), Miguel Angel Silvestre (Lito), Toby Onwumere (Capheus), Brian J. Smith (Will) e Jamie Clayton (Nomi). Eu temeria pela minha saúde cardíaca, sinceramente, ainda mais que – a cereja do bolo -, os fãs cantaram com essa parte do elenco "What's Up", do quarteto 4 Non Blondes, relembrando a clássica cena num karaokê que amo de paixão. Eu ia cantar junto, a plenos pulmões.

Por fim, acho fundamental contextualizar que a criação de Sense8 é assinada por The Wachowskis, as irmãs Lilly e Lana, ambas mulheres transgêneras. E não fizeram isso para chamar a atenção da mídia, ou qualquer outro julgamento que possa brotar fácil e medíocre: a dupla responde por um dos maiores sucessos cinematográficos mundiais – a trilogia Matrix, obra prima, na minha opinião, que criou e dirigiu antes da transição, ainda com os nomes de Andrew “Andy” e Laurence “Larry” Wachowski.  

O fato é que The Wachowskis presentearam o mundo com uma filmografia gloriosa e fico feliz por terem encarado o desafio de assumir a própria identidade, de corpo e de alma. Essa circunstância existencial de ambas explica muito da sensibilidade que permeia todo o roteiro de Sense8, entremeado pelas cenas calientes típicas da série, e o porquê de uma atriz trans fazer parte do elenco com toda a potência de um papel a conclamar a diversidade e o respeito às escolhas pessoais, ênfases dessa linda história.

As duas temporadas de Sense8 têm 12 episódios, cada uma encerrada com um especial de mais de duas horas. Na primeira, com o título de “Feliz Ano Novo, p*rra” (escrito com o asterisco mesmo); na segunda, o desfecho exigido pelos fãs e atendido pela Netflix é nomeado com uma perfeita expressão em latim: Amor vincit omnia – “O amor vence tudo”. Amém!

Por fim, deixo à reflexão a célebre frase do grande Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros”.

 

 

 

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