Quando crimes compensam e o público tende a torcer pelos “bandidos” | Levando a Série | F5 News - Sergipe Atualizado

Quando crimes compensam e o público tende a torcer pelos “bandidos”
“La Casa de Papel” e “Lupin” são eletrizantes, unindo inteligência e contextos revolucionários
Blogs e Colunas | Levando a Série 22/01/2021 16h00 - Atualizado em 22/01/2021 22h27

“O crime não compensa” é um dito popular decadente num tempo em que a impunidade campeia no mundo real. No território da ficção, porém, crimes cuja execução requer planejamento beirando a genialidade e, a princípio, sem admitir derramamento de sangue, são altamente compensadores para quem assiste duas opções eletrizantes disponíveis na Netflix. A primeira sugestão é La Casa de Papel, série espanhola exibida naquele país em 2017, pela rede Antena 3. No final do mesmo ano, a Netflix, que fareja um sucesso de longe, adquiriu os direitos para streaming. Readaptou a duração dos episódios originais – 15, exibidos em duas partes – e os transformou em 22, que renderam duas temporadas de La Casa de Papel. Como já estavam prontas, a primeira estreou ainda em 2017, no mês de dezembro, e a segunda, em abril do ano seguinte.  Estava dada a largada para a história espanhola se tornar a série de língua não inglesa mais assistida na Netflix em 2018 – e uma das top líderes de audiência no cômputo geral.  

As duas primeiras temporadas mostram a operação do grupo que invade a Casa da Moeda da Espanha, sob a liderança do artífice e maestro de todas as etapas do plano, um sujeito fascinante conhecido apenas pela alcunha de “Professor”.  Interpretado à perfeição pelo espanhol Álvaro Morte, esse cérebro aparentemente “do mal” em nada se encaixa nessa ótica. Ao contrário, ele encarna uma resistência ao “sistema”, razão pela qual a maior parte do público tende a torcer pelos criminosos – e, na história, boa parte da população espanhola. Os oito membros da quadrilha arregimentada pelo gênio usam a mesma máscara, uma caricatura do glorioso pintor espanhol Salvador Dali, ícone do surrealismo, falecido em 1989. Dos oito personagens que formam a gangue, todos se relacionando sob apelidos que são nomes de cidades, as duas mulheres se revelam muito marcantes: Nairóbi, interpretada por Alba Flores e minha preferida, e Tóquio, pela bela Úrsula Corberó.

Diz o “Professor” a seus recrutados: “não vamos roubar dinheiro de ninguém, em 2011, o Banco Central europeu emitiu 171 bilhões de euros do nada; assim como estamos fazendo, mas não para banqueiros”.  De fato, ao dominar a Casa da Moeda, mantendo mais de 60 reféns, o propósito da quadrilha é imprimir cerca de dois bilhões de euros, em cédulas sem chance de rastreamento. O que me deixou quicando no desenrolar do primeiro crime não foi a tensão contínua, mas a disputa entre o “Professor” e a inspetora de polícia Raquel Murillo, papel cumprido com excelência pela atriz e cantora basca Itziar Ituño. O jogo de gato e rato entre eles, o “bandido” e a “mocinha”, envolve sagacidade e estratégia em nível máximo, um dos diferenciais a conferir brilhantismo à série. E as reviravoltas do enredo só fazem aprimorar essa perspectiva. 

O caráter ideológico de que o crime vai se revestindo é intensificado pelo uso recorrente na série da canção que virou hino italiano na luta contra o fascismo de Benito Mussolini, no decurso da Segunda Guerra Mundial  - Bella Ciao. "Acho que tem a ver com o momento em que vivemos. Estamos céticos com os nossos governantes, com os bancos centrais e com os outros governos. A série junta várias coisas e tem um gênero perfeito para explorar todas essas dimensões”, disse em entrevista Álex Pina, criador de La Casa de Papel. Ele assinou contrato com a Netflix para a criação e produção de séries originais do streaming e emplacou outra bem sucedida: "Vis a Vis" (algo como Frente a Frente), já com cinco temporadas disponíveis e que traz Alba Flores, a Nairobi, no elenco. Criou ainda "El Embarcadero" (O píer), esta para a Movistar+, ainda sem data de chegar ao Brasil e cujo protagonista é interpretado por Álvaro Morte, o “Professor” de La Casa de Papel, o trabalho de maior consagração do ator espanhol... por enquanto.

Teria muito mais a comentar sobre essa deliciosa série, um justíssimo fenômeno de audiência, mas tudo que me vem à mente se enquadra em spoiler. Num trabalho que envolve suspense ininterrupto e inimagináveis reviravoltas, antecipar qualquer coisa equivale a um sacrilégio. Posso expor, apenas, que o desfecho das duas temporadas iniciais me soou impecável e, a princípio, nada mais haveria a se fazer ou dizer. Mas sucessos tendem a ganhar longevidade, frequentemente forçando a barra. Não foi o caso, a terceira temporada renovou a história com grande eficiência, e a quarta, sua continuação, também deu conta do recado. A quinta já foi confirmada para este ano, ainda sem data de lançamento. E se diz que será a temporada final. Correndo o risco de me surpreender novamente, creio que qualquer sobrevida além disso vai mais apequenar La Casa de Papel do que engrandecê-la. A conferir.

A segunda sugestão de hoje – Lupin - vem sendo associada a La Casa de Papel por muitos críticos e imprensa especializada no ramo do entretenimento. E é natural que isso ocorra pois, outra vez, o embalo da história é a imagem do anti-herói, acrescida de um ingrediente que a muitos seduz, eu incluída – mas registro que apenas no plano ficcional. Qual é ele? Vingança. A série assinada pela Netflix conquistou audiência entre as maiores desde seu lançamento no dia 8 passado. E justifica-se o interesse, a meu ver, tanto que maratonei num fôlego só, já que são apenas cinco episódios. 

Vamos ao enredo. O imigrante senegalês Assane Diop, desde garoto criado na França por seu pai, honesto e trabalhador, é apresentado por ele ao personagem ficcional Arsène Lupin, um clássico da literatura francesa da lavra do escritor Maurice Leblanc, nascido na Normandia em 1864. Vem daí o nome da série – Lupin -, erroneamente apresentada como uma inspiração na obra de Leblanc sobre o chamado “ladrão de casaca”. A  bem da verdade, a série narra as aventuras e desventuras de Assane Diop. É ele, o protagonista, que bebe da fonte de seu ídolo Arsène Lupin, o anti-herói que, na obra de Leblanc, perverte a lei, ferrando vilões bem situados financeira e socialmente, no que se constituiu por tabela em uma luta contra injustiças. Essa percepção foi alimentada deliberadamente pelo autor dos livros, ao determinar o aposto de “gentil ladrão” ou “cavalheiro ladrão” a seu personagem, criador de planos mirabolantes e um mestre dos disfarces. Voltando à série Lupin, o protagonista Assane Diop testemunha seu amado pai sendo vítima de uma injustiça sem chance de reversão. E, repito, ele sim se inspira em Arsène Lupin para operar a vingança que, penso eu, leva a maior parte da audiência a torcer por esse “bandido”. Aqui vai entre aspas porque, se comparado o Assane ao sujeito que destrói a vida do pai dele, um ricaço inescrupuloso que pega o barco do preconceito – contra imigrantes ou negros ou ambos -, fica muito fácil verificar quem é mesmo o bandido na história.

Coloque-se em cima de tudo isso a cereja do bolo, a interpretação do ator Omar Sy como protagonista, e se entende como a receita funcionou tão bem.   Bati os olhos nele e pensei: ”conheço esse cara”. Isso acontece o tempo todo comigo, às vezes descubro sem recorrer ao Google, mas desta vez não rolou, admito. Omar Sy ganhou em 2012 o César de melhor ator – o equivalente francês ao Oscar – por sua atuação no fantástico filme “Intouchables” (Intocáveis), que eu amei. Foi o primeiro ator negro a levar para casa esse prêmio. Em Lupin, sem sombra de dúvida, ele qualifica a série, que flerta com a exposição do racismo estrutural, quando Diop comenta, por exemplo, disfarçado como membro da equipe de limpeza do Museu do Louvre: “ninguém olha para um faxineiro negro”. E olha que ele tem mais de 1,90m de altura.

Por fim, deixo à reflexão uma frase de ninguém menos que Martin Luther King: “A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo lugar”.

Para maratonar:

La Casa de Papel – quatro temporadas, total de 38 episódios, disponível na Netflix; 

Lupin – uma parte, total de cinco episódios, disponível na Netflix.

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