Que tal iniciar o ano ganhando cultura e conhecimento... e se divertindo? | Levando a Série | F5 News - Sergipe Atualizado

Que tal iniciar o ano ganhando cultura e conhecimento... e se divertindo?
Transformadas em séries, obras como “O Auto da Compadecida” e “Anne com E” revigoram clássicos  
Blogs e Colunas | Levando a Série 03/01/2021 19h30 - Atualizado em 03/01/2021 20h16

Como toda e qualquer tecnologia, a TV não é essencialmente boa, nem má. O consumo de seus produtos se opera ao sabor de escolhas particulares e, para fazê-las, todos podemos contar com aquele aparelhinho incrível chamado controle remoto. Embora eu aprecie muito as chamadas “abobrinhas” – aquelas coisas que a gente assiste para se desligar alegremente da realidade, um lenitivo de grande valia nos últimos tempos - a telinha prossegue viabilizando chances de ampliar o próprio repertório cultural. Ai da literatura, por exemplo, se não existisse um acervo variado de filmes e séries adaptados de livros, entre clássicos tendentes ao esquecimento e, no outro extremo, obras pouco conhecidas que, a partir dessa vitrine, granjearam maior interesse e impulso em volume de vendas. 

A primeira sugestão de hoje foi transformada em livro, mas respeitado o seu formato original como peça de teatro, ou seja, a narrativa flui por intermédio dos  diálogos entre os personagens. Estamos falando de O Auto da Compadecida, obra prima do paraibano Ariano Suassuna escrita em 1955 e encenada pela primeira vez no ano seguinte pelo Teatro Adolescente de Recife, capital para onde a família do autor se mudara e onde ele, ainda estudante ginasial, já publicava textos em jornais. 

A peça de Suassuna foi conquistando público e crítica, sobretudo a partir da apresentação pelo mesmo grupo no Rio de Janeiro, em 1957, no Festival de Teatros Amadores do Brasil. Mesmo encenado em várias ocasiões, O Auto da Compadecida teve sua popularidade catapultada ao nível merecido no ano de 1999, especificamente em janeiro, quando a TV Globo exibiu a minissérie homônima em quatro episódios. A adaptação ficou a cargo do diretor Guel Arraes, filho do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes e conhecedor da obra de Ariano Suassuna, por quem sempre nutriu a devida reverência. 

Pelo que Arraes narrou em entrevistas, Ariano Suassuna expôs sua relutância em permitir a adaptação da peça para a TV, mas cedeu e, ao final, se mostrou satisfeito com o resultado. Ele permitiu inclusive que fossem agregados à minissérie aspectos de outra peça de sua autoria: “O Santo e a Porca”, escrita em 1957. Num cenário hipotético em que a adaptação global não vingasse, imaginem quantos brasileiros sequer teriam ouvido falar de O Auto da Compadecida e seu fabuloso autor. Tampouco conheceriam as artimanhas da dupla João Grilo e Chicó, os personagens centrais, sócios em pobreza a lidar rotineiramente com as agruras da sobrevivência no sertão da Paraíba. Um desafio ainda hoje e bem pior nos anos 30, época em que se desenrola a história. 

Na minissérie, João Grilo e Chicó ganham vida pelas atuações geniais de Matheus Nachtergaele e Selton Mello, respectivamente. O primeiro usa a própria esperteza como recurso para garantir o pão de cada dia; o segundo o auxilia nas tramoias e inventa descaradamente episódios nos quais se revela dotado de grande valentia.  João Grilo não engole nenhum e, quando põe em dúvida os surreais desfechos dos “causos” de Chicó, ouve em resposta o bordão que Selton Mello tornou inesquecível: “não sei, só sei que é assim”. Parênteses para uma curiosidade: no Teatro, Agildo Ribeiro e Armando Bógus interpretaram João Grilo.

Voltando à produção global, Grilo e Chicó vão trabalhar na padaria de Eurico (Diogo Vilela), casado com Dora (Denise Fraga), que deixa fluir sua atração por homens másculos, do tipo valentão, bem diferentes do marido, a quem trai sem cerimônia. Na verdade, Dora ama mesmo é sua cadela, cuja morte rende cenas pelas quais se evidenciam a ganância e a hipocrisia de membros da Igreja Católica, no caso o padre João – em deliciosa atuação de Rogério Cardoso – e o Bispo, na pele de Lima Duarte, carismático como sempre.   

Chicó sucumbe à sedução de Dora – ao mesmo tempo em que, junto com Grilo, procura levá-la a comprar deles um “gato que descome dinheiro”, um golpe, obviamente. Isso até que o rapaz se apaixona por Rosinha (Virginia Cavendish), tão logo esta chega ao vilarejo. Filha do poderoso e truculento Antonio Moraes (Paulo Goulart), a bela moça desperta o interesse também do cabo Setenta (Aramis Trindade) e de Vincentão (Bruno Garcia), o machão do pedaço. A história ganha novos e surpreendentes contornos a partir da entrada em cena do cangaceiro Severino, mais um sucesso do ator Marco Nanini. Corta para a minha cena preferida, em que João Grilo, Eurico, Dora, Padre João, o Bispo e Severino encaram o julgamento de um Jesus negro (Maurício Gonçalves), com a participação do diabo (Luís Melo), sedento por levar aquelas almas. É quando aparece Nossa Senhora, a Compadecida, cuja grandeza se cumpre na interpretação brilhante de Fernanda Montenegro, com sensibilidade aflorando por todos os poros. 

A peça de Ariano Suassuna é avaliada por muitos estudiosos como uma sátira social, na medida em que, no microcosmo de um vilarejo sertanejo, são reproduzidos elementos típicos do Nordeste nos anos 30 e adiante. Guel Arraes se manteve fiel a essa proposta narrativa e também à estética priorizada pelo autor em toda sua obra – e nas palestras que passou a fazer por todo o país –: a valorização e preservação da cultura popular nordestina. Suassuna assumiu inclusive, em várias ocasiões, beber rotineiramente na fonte da literatura de cordel. Sorte do Brasil em tê-lo como filho. 

Guel Arraes assina também a versão cinematográfica da minissérie, lançada em 2000 pela Globo Filmes. Apesar da reedição obviamente incluir o corte de várias cenas, O Auto da Compadecida teve acolhida vitoriosa, sobretudo para os padrões de bilheteria em produções nacionais, contabilizando mais de 2 milhões de espectadores. Na telinha e na telona, ganhou a cultura brasileira.

A segunda dica de hoje é uma produção original da rede canadense CBC, que conquistou o mundo ao ser comprada pela Netflix: Anne with an E (Anne com E). A história da menina sempre de bem com a vida não por acaso é frequentemente associada à de outra famosa garota: Pollyanna. A personagem criada por Eleanor H. Porter no livro publicado em 1913, um clássico da literatura infantojuvenil, junto com sua continuação, lançada em 1915 – “Pollyanna moça” –, pratica o “jogo do contente”, que consiste em extrair de qualquer circunstância ruim algo de proveitoso. Mas as semelhanças entre ela e Anne vão mais longe do que o pendor de ambas à visão positiva dos fatos. As duas são órfãs e têm 11 anos quando se tornam protagonistas de histórias que sobreviveram ao tempo. 

Ocorre que o livro Pollyanna fez grande sucesso no Brasil – num tempo em que leitura era um hábito valorizado. Eu mesma o li na escola, assim como muita gente da minha geração. Desconheço as razões pelas quais a história de Anne não despertou interesse ao nível da outra em mesmo estilo. Até virar série da Netflix, pouca gente tinha conhecimento de que se trata de uma adaptação do livro “Anne of Green Gables”, escrito em 1908 pela canadense Lucy Maud Montgomery, e do segundo de uma saga de oito obras – “Anne de Avonlea”, este de 1909. A orfã canadense nasceu, portanto, antes da norteamericana Pollyanna.  E o livro que a gerou foi traduzido para mais de 20 idiomas, vendeu acima de 50 milhões de cópias em todo o mundo e rendeu adaptações para o teatro, o cinema e esta mais recente, para o streaming.

A história é ambientada no fim do Século XIX. Os irmãos Marilla (Geraldine James) e Matthew Cuthbert (R.H. Thompson) são donos da fazenda Green Gables, na Prince Edward Island, no Canadá. Já com certa idade, eles resolvem adotar um garoto órfão, na perspectiva de que ele os ajudasse na labuta diária. Só que o orfanato com o qual fizeram contato se engana e envia aos irmãos uma menina ruiva espevitada e tagarela: Anne Shirley, de 11 anos.  Embora relutantes a princípio – Marilla mais do que Matthew –, o furacão Anne, a despejar alegria, curiosidade e autenticidade por todos os poros, acaba se cravando no coração da dupla. Enquanto testemunham impactos da mediocridade humana sobre a garota, entremeados por acolhidas imersas em beleza, os irmãos ficam defronte das próprias leituras de mundo e as vão revendo evolutivamente. 

Sem dúvida, o sucesso da série dependia visceralmente da atriz protagonista. A jovem Amybeth McNulty, que deu vida a Anne com toda a empatia que a personagem precisava despertar, disputou o papel com outras 1800 candidatas, através de buscas online feitas em três continentes. "Amybeth filmou sua audição diretamente da Irlanda. Ela capturou nossa atenção imediatamente. No final, as top 5 concorrentes fizeram um grande exercício de improvisação com a diretora Niki Caro. Lá descobrimos que Amybeth era nossa garota", declarou a criadora da série, Moira Walley-Beckett, conforme notícia do portal Adoro Cinema. Moira, a propósito, foi roteirista e produtora premiada por Breaking Bad, já alvo de análise nesta coluna. O cancelamento da série pela Netflix, ao anunciar que a terceira temporada de Anne with an E seria a última, ensejou reação de fãs por todo o mundo, que chegaram a fazer um abaixo-assinado por sua renovação, até hoje sem efeito prático. 

Enquanto isso, moradores da Ilha do Príncipe Eduardo continuam fazendo o que faziam antes mesmo da série: capitalizam a obra da conterrânea canadense Lucy Maud Montgomery. Do setor turístico ao comércio, a história de Anne alavanca a economia da região, provavelmente com um bem vindo salto. Lojas vendem lembranças, a exemplo de chapéus de palha com tranças ruivas neles costuradas, e um parque temático disponibiliza figurinos para que turistas tirem fotos caracterizados como os personagens. Sim, cultura na devida importância, respeitada como deve ser, gera recursos para quem embarca na maré favorável. Curiosidade: um exemplar da primeira edição do livro “Anne of Green Gables” foi arrematado por US$ 37,5 mil, em 2009, num leilão em New York.  

Despeço-me com os mais sinceros votos de um novo ano em que respeito, empatia e misericórdia vençam – lições claras expressas, cada uma a seu modo, nas duas sugestões de hoje. Ficam as palavras do Dalai Lama: “Pouco importa o julgamento dos outros. Os seres humanos são tão contraditórios que é impossível atender às suas demandas para satisfazê-los.Tenha em mente simplesmente ser autêntico e verdadeiro”.

Para maratonar:
O Auto da Compadecida – uma temporada com quatro episódios, completa na Globoplay;

Anne with an E – três temporadas, total de 27 episódios, completa na Netflix.

 

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