No Brasil não existe racismo. Algumas personalidades negras de Sergipe discordam | F5 News - Sergipe Atualizado

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No Brasil não existe racismo. Algumas personalidades negras de Sergipe discordam
Confira a quarta e última matéria da série enfocando a abolição da escravatura
Cotidiano | Por Monica Pinto 16/05/2022 19h29 - Atualizado em 16/05/2022 22h54


A construção cultural que alicerçou a escravidão no Brasil se operou em variadas vertentes, mas, em comum a elas, surgia a “despersonalização” dos africanos vítimas do tráfico, colocados na condição de “inumanos” e “sem alma”, pelo fato de terem dogmas religiosos diferentes dos professados na Europa. Essa estratégia da colonização já fora executada em relação aos povos originários da terra onde aportou Pedro Álvares Cabral, no ano de 1500, ocorrência ainda apontada como uma “descoberta”, apesar do futuro Brasil já ter, então, uma população estimada em 6 milhões de indígenas.  

O diretor, roteirista e escritor mineiro Joel Zito Araújo, também formado em Psicologia e mestre em Sociologia da Educação, fez do racismo um tema frequente em suas pesquisas acadêmicas, com ênfase para a participação dos afrodescendentes na indústria audiovisual. Sobre essa jornada, ele resume: “Examinar a representação dos atores e das atrizes negras em quase 50 anos de história da telenovela brasileira, principal indústria audiovisual e dramatúrgica do país, é trazer à tona a decadência do mito da democracia racial, sujando assim uma bela mas falsa imagem que o Brasil sempre buscou difundir de si mesmo, fazendo crer que a partir de nossa condição de nação mestiça superamos o ‘problema racial’ e somos um modelo de integração para o mundo.”.

Em seus estudos sobre a produção ficcional televisiva, Joel Zito Araújo observou o predomínio dos papeis entregues a atores e atrizes negras: empregados(as) domésticos(as) e, nas chamadas produções de época, escravizados. “[A telenovela] Pactua com um imaginário de servidão e de inferioridade do negro na sociedade brasileira, participando assim de um massacre contra aquilo que deveria ser visto como o nosso maior patrimônio cultural diante de um mundo dividido por sectarismos e guerras étnicas e religiosas, o orgulho de nossa multirracialidade”: avalia o pesquisador.

O fato é que não só as novelas, mas também e sobretudo a propaganda, contribuíram para consolidar uma imagem de subalternidade dos afrodescendentes - abordagem racista em essência, porém, adequada à percepção ainda vigente hoje em segmentos da sociedade, felizmente em menor escala. Mesmo assim, nas peças ficcionais ainda é comum situar os negros em papeis rotulados, universo no qual se destacam motorista, segurança ou, o ainda mais comum, empregada doméstica.

O promotor Luis Fausto Valois Dias Santos, titular da 1ª Promotoria da Justiça da Curadoria da Infância e da Adolescência do Ministério Público de Sergipe, percebe essa construção cultural. “É como se houvesse um estereótipo negro e só pudéssemos ocupar essas profissões. Nada temos contra, muito pelo contrário, são pessoas que lutam o dia a dia para ganhar seu ganha-pão, mas nós podemos estar em qualquer função na nossa sociedade, porque o que muitas vezes falta é a oportunidade”, analisa.

Ele testemunhou diretamente essa percepção ainda fortemente introjetada no seio da sociedade. Luis Valois contou ao F5News que tinha acabado de retornar do Paraná, ainda jovem, e foi a Salvador sair em um bloco de carnaval, convidado por um dos diretores deste. Em um dado momento, ele se dirigiu a um local que concentrava lanchonetes, no circuito Campo Grande, e quando retornou ao bloco, foi barrado pelo segurança. “Ele disse que conhecia as pessoas que faziam parte daquele lugar e que eu não tinha o perfil do bloco. Fiquei na Avenida Sete, sem saber para onde ir, até que meus amigos notaram minha falta. Um dos amigos, em cima do trio, me avistou e me indicou para que eu pudesse retornar ao convívio deles”.

O promotor Valois também disse ao portal que preparou a sua filha, hoje com 18 anos de idade, para passar por episódios de racismo sem que eles afetem mais profundamente a vida dela, como ocorreu quando era uma criança de aproximadamente oito anos.

“Em certa situação, uma pessoa falou do cabelo de minha filha e se dirigiu a ela de uma forma que a machucou, tratando mal ela e o cabelo dela”, lembra. A menina quis levar o caso à autoridade policial, o registrando em uma delegacia, para onde acabou chamada a pessoa que manifestara racismo – é bom lembrar, desde 1984 crime inafiançável no Brasil. Prossegue Luis Valois: “Minha filha veio até mim e disse: ‘meu pai, o senhor me ensinou e foi dessa forma que eu agi’”.  

O preconceito se manifestou fortemente em outro caso que o promotor presenciou. Ele compareceu à posse do ex-ministro Joaquim Barbosa no Supremo Tribunal Federal, em Brasília, no ano de 2003. “Eu estava numa área externa assistindo por um telão, quando veio a informação de que algumas autoridades na área interna queriam me conhecer e conhecer o meu primo, que estava comigo, o doutor Paulo José de Oliveira Alves, um negrão de quase dois metros de altura, formado em Administração e graduado em Direito, advogado militante na Bahia”.

Mas quando ambos chegaram ao ambiente do plenário, foram barrados. “Perguntaram se o segurança que estava comigo ia entrar também. Eu perguntei: ‘quem é o segurança?’ e eles disseram: ‘esse rapaz que está aí com o senhor’. Eu disse que não, porque o Dr. Paulo é ele quem é o doutor, eu sou apenas um operador do direito. Porque o Dr. Paulo sendo alto, forte, negro, eles acharam que era o meu segurança”, relatou.

A advogada Valdilene Martins, presidente da Comissão de Direitos Humanos do Instituto Ressurgir em Sergipe, diz que o racismo “é praxe”. E contou ao F5News um incidente que demonstra a sobrevivência da imagem do afrodescendente como um trabalhador mais humilde. “Teve um evento da OAB há uns três anos, alguma coisa de café derramou e uma mulher chegou e perguntou a mim: ‘Você trabalha aqui? Poderia limpar para mim?’, eu disse não e ela olhou para mim, como quem diz ‘como não?’. Respondi: 'Eu sou advogada’, ela perguntou: ‘Você é advogada?’ e eu disse ‘sou’”, relatou ao portal.

Valdilene levanta a questão crucial do racismo velado: “por que essa surpresa?”. A mesma percepção se repetiria quando a advogada foi dar entrevista em uma emissora de rádio. Na saída, um funcionário a abordou e disse: “Eu vi a sua entrevista, achei maravilhosa, você sabe falar muito bem, quando eu vi você chegar, que eu olhei para você, eu disse assim: ‘Quem? Essa?’ Não imaginei que a senhora era tão inteligente e nem que você sabia falar assim”.

A advogada termina o relato em tom jocoso: “Que tal? Ele ainda disse isso como se fosse um elogio”.

O coronel Luis Fernando Silveira de Almeida, da reserva da Polícia Militar de Sergipe, ex-secretário da Defesa Social e Cidadania da Prefeitura de Aracaju, foi outro a sentir na pele um pré-julgamento raso que, para a maioria dos afrodescendentes, se trata de um acinte rotineiro. Confira no áudio abaixo seu depoimento, também transcrito em seguida.

"Ser xingado ou barrado, ou qualquer coisa assim, nunca aconteceu, mas também porque o recorte social, ele é muito mais grave no preconceito em relação aos pretos. O que aconteceu comigo é que eu tava morando no Amapá, trabalhava no governo de lá em 2002, e nós recebemos lá o desembargador Rui Portanova, do Rio Grande do Sul, para uma palestra, e nessa palestra tinha um juiz, gaúcho. Aí depois da palestra, eu conversando, ele falou: 'ó, esse aqui é o Nando, nosso compadre'. Esse juiz me olhou com uma cara, assim, não digo desprezo e tal, tipo “esses caras gostam de dar filho para gente importante batizar”. Ele não disse, mas foi a sensação, o olhar dele foi realmente meio de… de desprezo, de deboche.

À noite, ele convidou o Rui para ir jantar num hotel e a gente tava lá, quando chega a minha comadre com a filha, aí ela: 'ó, essa aqui é Aninha, que é a afilhada do Nando'. O cara fez uma cara de espanto, ainda disse: 'ah, ele é padrinho da filha de vocês?'; ela: 'é, é sim'. Eu falei assim: “meus filhos são batizados pelos meus irmãos, não tem ninguém tão importante quanto o Rui Portanova, não”. O que eu me lembro foi isso, foi meio velado, mas existiu."

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