“Direito de propriedade permanece intocável, como deve ser”, diz Aurélio Belém | F5 News - Sergipe Atualizado

“Direito de propriedade permanece intocável, como deve ser”, diz Aurélio Belém
Advogado explica polêmica sobre o decreto de calamidade do Governo de Sergipe
Política | Por Will Rodriguez 31/03/2021 06h03 - Atualizado em 31/03/2021 13h36


O Decreto de Calamidade Pública do Governo de Sergipe em função da pandemia de covid-19 em nada altera o direito de propriedade, assegurado pela Carta Magna. Essa é a constatação do advogado Aurélio Belém, especialista em Processo Civil. Em entrevista ao portal F5 News, o secretário-geral da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SE) esclareceu que a requisição administrativa prevista no decreto autoriza o poder público a utilizar bens ou serviços particulares, que sejam necessários para minorar as consequências de uma situação de perigo público, como é o caso de uma crise sanitária. Ela não implica, contudo, em transferência de propriedade ou em sua limitação, e ainda prevê a indenização dos proprietários eventualmente afetados. 

F5 News: O que está previsto no decreto em relação ao direito de propriedade?

Aurélio Belém: O Decreto 40.798, de 25 de março de 2021, do Governo do Estado de Sergipe declarou situação de anormalidade na modalidade “Estado de Calamidade Pública”, em razão da pandemia da COVID-19.

Vale dizer que edições anteriores desse mesmo decreto, em vigor desde março de 2020, tiveram a calamidade pública reconhecida pela Portaria Federal 2.637/2020, bem como estavam alinhadas com as diretrizes da OMS, que declarara a pandemia e decretara “emergência de saúde pública internacional”, e com o próprio Governo Federal, que decretara emergência sanitária, bem como com o Decreto Legislativo 6/2021, promulgado pelo Congresso Nacional, por iniciativa da presidência da república, que decretou “estado de calamidade pública nacional”, deixando evidente o notório perigo público que enfrentamos.  
Nesse contexto, indo direto ao ponto, o decreto não prevê, e nem poderia fazê-lo, qualquer regramento em relação ao direito de propriedade, que permanece intocável, como deve ser. No entanto, a máxima consagrada nos adverte que “situações excepcionais exigem medidas excepcionais”.

Conforme previsão do decreto (art. 3.º, I e II) – que, diga-se de passagem, reproduz texto da Lei Federal 13.979/2020 (art. 3.º, VII, da CF/88) – duas situações excepcionais se apresentam como possíveis, a saber: 

A primeira delas é a dispensa de procedimentos licitatórios – possibilidade já prevista em lei federal (art. 3.º da Lei 8.666/93) – desde que demonstrada a urgência, como medida administrativa efetivamente imprescindível para a rápida aquisição de bens ao atendimento como resposta à situação calamitosa, como por exemplo a compra rápida de insumos e medicamentos hospitalares.

A segunda medida prevista, e que parece ter causado a maior celeuma, é a chamada requisição administrativa, na qual o poder público, em situações de perigo público, como esse que estamos vivendo com a pandemia, poderá exigir o uso de bens ou serviços particulares, dês que estrita e efetivamente necessários para minorar o grave perigo público vivenciado.

Todos nós já assistimos filmes policiais estadunidenses em que agentes requisitam imediatamente carros, motos e etc. de particulares transeuntes para prosseguirem numa perseguição ou para cumprirem uma diligência policial urgente ou para agir numa situação de estado de necessidade. Pronto, eis aí uma espécie bem mais contundente de requisição administrativa.

F5News: Há respaldo constitucional no dispositivo estabelecido pelo Estado sobre o direito de propriedade?

Aurélio:

Primeiro, vale repetir, o decreto não ataca do direito de propriedade. Isso é uma distorção que foi disseminada em decorrência de um oportunismo que se aproveita do desconhecimento dos institutos jurídicos existentes em nosso ordenamento. Daí a importância de se esclarecer juridicamente a questão para evitar a desinformação, independente de preferências ideológicas ou político-partidárias.  

Nesse aspecto, o que o decreto trata é de um instituto jurídico denominado requisição administrativa, que significa a possibilidade legal de o poder público usar, temporariamente, bens ou serviços particulares, de maneira compulsória, em caso de perigo público (desastres, epidemias, calamidades, guerra...), resguardada a indenização posterior. 

Portanto, no que diz respeito à requisição administrativa, o decreto governamental tem sim respaldo constitucional, mais precisamente no art. 5.º, XXV, da CF/88, que prevê: “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”. 

A propósito, o instituto da requisição administrativa está previsto em diversas leis federais, tais como a Lei do SUS, Lei de Greve, dentre tantas outras. Inclusive, especificamente previsto na Lei 13.979/2020, que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”, cujo inteiro teor pode ser acessado aqui nesse link: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm , onde se pode ler:

Art. 3º  Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela Lei nº 14.035, de 2020) 

(...) VII - requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e

Existe outro instituto constitucional em vigor (art. 5.º, XXIV, da CF/88) que alcança diretamente o direito de propriedade e não precisa sequer do estado de perigo público ou calamidade para sua decretação, que é a desapropriação (procedimento em que bens privados poderão ser tomados pelo Estado em casos de utilidade ou necessidade pública, ou interesse social, por meio do pagamento de indenização prévia em dinheiro) e ainda outros institutos que traduzem intervenção do poder público na propriedade privada como a limitação e a servidão administrativa (coordenam o uso da propriedade); a ocupação temporária; e o tombamento (preservação do valor histórico,  artístico e cultural da propriedade), mas a questão aqui em debate é diversa, trata-se de outra modalidade de ferramenta jurídico-administrativa de uso temporário da propriedade privada pelo poder público, que é a requisição administrativa. 

Embora se trate de uma ingerência estatal transitória sobre a propriedade privada, vale esclarecer que a requisição administrativa não implica em transferência de propriedade, apenas obriga o particular a ceder, temporariamente, bens ou serviços privados, quando necessários para o enfrentamento de uma situação urgente de perigo público (pandemia, por exemplo), tudo isso em nome do princípio constitucional que impõe a supremacia do interesse público sobre o privado, com vistas ao bem comum da coletividade.

Aliás, nesse sentido, cabe aqui colocar que a requisição administrativa tem origem filosófica nas ideias liberais do contratualismo social tratadas pelos clássicos iluministas (Rousseau, Hobbes, Grotius, Locke...), passando por Kant e mais recentemente pelo neocontratualismo do professor estadunidense John Rawls, de onde surge e se desenvolve a ideia de que cada cidadão deve abrir mão de um pedaço de sua liberdade em prol de um Estado que lhes garanta paz social. 

Historicamente, no Brasil, a requisição administrativa não é algo novo, está prevista desde a primeira Constituição da República de 1891 e no curso do tempo foi conquistando aprimoramentos até chegar a disciplina atual.

F5News: Interpretá-lo como autorização para que o governo acabe com o direito de propriedade é equivocado?

Aurélio: Com a absoluta tranquilidade de quem tem independência para expor posicionamento técnico-jurídico, afirmo que essa interpretação não só é equivocada, como é no fundo maldosa, e reflete uma triste realidade já conhecida do desconhecimento cívico, histórico, jurídico, político, legislativo e administrativo da população acerca dos seus direitos e deveres, mas o pior não é o desconhecimento, mas sim a falta de interesse político em conhecer aspectos inerentes a cidadania. 

É triste constatar que, infelizmente, parte das pessoas preferem disseminar desinformações em manada, antes mesmo de checar ou procurar conhecer a sua veracidade, eis o grande problema das famigeradas fake news, que em nada contribuem com a superação das crises e resolução de problemas, ao contrário, reproduzem uma atmosfera bélica e o império da bravata e da enganação. 

Em suma, é lamentável ter que dizer isso, mas o óbvio ululante às vezes precisa ser dito e repetido. O decreto não acaba com o direito de propriedade, que é garantido constitucionalmente, ele até o reforça, na medida em que o reconhece como regra e prevê a indenização. Também não implementa o confisco estatal de bens particulares, não traz a expropriação, o que ele disciplina é uma autorização normativa do Chefe do Poder Executivo Estadual, baseada na Constituição e na lei,  para que as autoridades competentes, por exemplo, os gestores locais da saúde pública, possam fazer uso do instituto, obedecendo é claro os requisitos legais (justificada a específica necessidade, nexo de causalidade e a urgência), garantindo-se sempre a indenização posterior, em caso de eventual dano ou consumo do bem requisitado.  

Em minha ótica, descabe condenar o decreto sob as bravatas populistas fundadas em abstratas futurologias perigosistas de que ele possibilitará desvios, malversações, cometimento de ilícitos, falcatruas ou coisas do tipo. Não discuto com esse tipo de abordagem, não entro nesse destrutivo debate oportunista e nada civilizado, que nada constrói por sua completa impertinência lógica, técnica e civilizada, até porque não faço aqui análise política acerca de sua decretação, cuja implementação prática e casuística no caso em concreto cabe à conveniência e oportunidade antevista pelo gestor público competente.

Gostaria muito que o enfrentamento da discussão acerca da discricionariedade administrativa da aplicação do instituto fosse travado num debate democrático, lúcido e respeitoso, onde a dialética política pudesse construir ideias para o progresso e não para o retrocesso, o que, infelizmente, tem se tornado cada vez mais rarefeito em nossa atmosfera polarizada e poluída pelo ódio, intolerância e pela alienação.  

Enfim, tenho dito, do ponto de vista jurídico, que é o que me cabe aqui discorrer desapaixonadamente, devo dizer em alto e bom som que o decreto governamental não é inconstitucional, não é ilegal e não engorda!

Edição de texto: Monica Pinto
Mais Notícias de Política
Jefferson Rudy/Agência Senado
17/04/2024  20h10 Laércio destaca a importância do ensino técnico profissional
Comissão Estadual da Verdade
17/04/2024  10h29 Morre Milton Coelho, militante histórico do PCB em Sergipe
Agência Brasil
16/04/2024  20h26 Senado aprova PEC sobre criminalização da posse de drogas
Jefferson Rudy/Agência Senado
16/04/2024  20h00 Comissão do Senado debate impactos no mercado após três anos da Lei do gás
Agência Alese
16/04/2024  16h35 Linda Brasil denuncia nova ameaça de morte e cobra segurança do Estado

F5 News Copyright © 2010-2024 F5 News - Sergipe Atualizado