José Gonçalves Barroso: multifaces de um sacerdote - Sergipe, séc. XIX. | F5 News - Sergipe Atualizado

História
José Gonçalves Barroso: multifaces de um sacerdote - Sergipe, séc. XIX.
Ele foi Vigário Geral de Sergipe, o mais importante cargo eclesiástico da província
Cotidiano 23/09/2023 18h00


Amâncio Cardoso*

Poucas figuras públicas em Sergipe no século XIX atuaram por tanto tempo em diversos campos da atividade humana, com relativa influência, competência e reconhecimento, como José Gonçalves Barroso. Ele se tornou, assim, figura ímpar na vida de Sergipe oitocentista.

Acompanhemos sua trajetória através das múltiplas áreas as quais se dedicou.

José Gonçalves Barroso nasceu em 1821 na então vila de Laranjeiras-SE.[1] Sua mãe, Martinha Maria do Sacramento, era escrava de Antônio Gonçalves Barroso, com quem se casou, após ser alforriada, e conceberam respectivamente quatro filhos: José, Leandro, Maria e Francisco.[2]

Ainda jovem, José frequentou o Seminário Arquiepiscopal da Bahia. Sua estadia em Salvador foi garantida por amigos da família. Assim, o seminarista de origem humilde não precisou despender com “mesa, lavagem de roupa e aluguel de casa”. Ele recebeu “a sagrada ordem de presbítero” no dia 10 de novembro de 1844.[3]

Nove anos depois, 1853, padre Barroso concorreu à Vigararia de São Cristóvão, então capital da província, devido à morte do antigo vigário Luiz Antônio Esteves. José Barroso foi o escolhido e passou a ser vigário colado da Freguesia de Nossa Senhora da Vitória.[4]

Em 1861, padre Barroso foi nomeado Vigário Geral de Sergipe, o mais importante cargo eclesiástico da província, substituindo o finado cônego Inácio Antônio da Costa Lobo.[5]

Gonçalves Barroso se destacou em sua carreira eclesiástica como exímio orador sacro. Consagrou-se desde cedo por sua eloquência, dominando a arte da retórica.[6] Neste aspecto, foi intensamente requisitado para subir ao púlpito, tanto na província como na Corte.

Numa estadia entre julho de 1866 e dezembro de 1867 na capital do Império, por exemplo, o padre sergipano foi convidado para discursar quinze vezes nas solenidades organizadas por Irmandades Católicas do Rio de Janeiro; e sempre elogiado como orador de destaque.[7]

Uma rara exceção de avaliação negativa sobre seu desempenho no púlpito, ocorreu durante a visita de D. Pedro II (1825-1891) a Sergipe em 1860. O Imperador classificou de “medíocre” o sermão de Barroso. Mas que se diga, a bem da verdade, que isto ocorreu logo depois de sua majestade ter enfrentado longa viagem marítima; de ser recebido com alocuções e formalidades do estilo; além de assistir ao “Te Deum e cerimônias que nunca se acabavam”, como ele mesmo registrou ao desembarcar em Aracaju.[8]

Vigário Barroso não despejou sua oratória apenas no púlpito, também a utilizou na sala de aula. O padre mestre foi professor público de filosofia no Liceu da antiga capital, desde 1847, onde funcionou no Convento do Carmo. Neste mesmo ano, Barroso fundou e dirigiu seu próprio colégio particular “São Cristóvão”, onde se ofertavam aulas de “primeiras letras, geografia, música e todos os preparatórios”. Ademais, o vigário foi nomeado primeiro bibliotecário da Biblioteca Pública Provincial, entre 1851 e 1854, funcionando num dos salões do Convento de São Francisco da velha cidade.[9]

Além do sacerdócio e do magistério, outro campo intelectual que Gonçalves Barroso exerceu com intensidade foi o jornalismo. No jornalismo político, ele foi redator do periódico oficial Correio Sergipense (1852-1853); colaborou no Jornal de Sergipe; redigiu O Voto Livre (São Cristóvão, 1857-1860); O Liberal (Aracaju, 1868) e o Echo Liberal (Aracaju, 1877-1882). Já no jornalismo religioso, o padre fundou e redigiu A Assembléa Catholica (São Cristóvão, 1859-1860).[10]

Ao passo em que exercia as funções de sacerdote, professor e jornalista, José Gonçalves Barroso foi também um político atuante e assíduo no parlamento provincial, sobretudo no partido Liberal. Entre 1848 e 1882, ele assumiu o cargo de deputado em oito legislaturas.[11] Tribuno combativo, geralmente era eleito por seus pares para compor a mesa diretora, seja como presidente ou como primeiro secretário.[12]

Entretanto, a longa permanência no parlamento provincial foi moralmente desgastante para o padre Barroso. Pois seus adversários o feriam profundamente com ataques pessoais e familiares, como soe ocorria na política sergipense do século XIX, em que partidos “sem bandeira, sem programa, sem princípios, além de inspirados no capricho e interesses pessoais”, pugnavam encarniçadamente pelo domínio da província.

Neste contexto, o vigário era sempre visado e detratado pela oposição. Mas Barroso também retribuía as “ásperas provocações” dos seus opositores através de sua oratória “veemente e ferina” e de sua pena não menos “causticante”.[13]    

Tomemos dois exemplos de verrinas pessoais que marcaram a carreira política do reverendo. A primeira foi o apelido pejorativo e jocoso que lhe imputaram de “Lambão Pitorra”. Lambão significa alguém guloso ou comilão. Pitorra é o pião, brinquedo infantil; alusão a alguém de baixa estatura e gordo. Lambão também aludiria, naquele contexto, aos diversos cargos ocupados pelo atarracado Barroso - redator, professor e bibliotecário - no governo de Oliveira e Silva (1851-1853).[14]

O segundo exemplo de ataque pessoal contra o padre-deputado o afetou fundamente, fosse porque se evidenciava em seus discursos, ou porque o acompanhou por toda vida. Trata-se das denúncias contra sua origem étnica e racial. Dizia-se que ele teria nascido de “ventre escravo”. Pois, segundo seus opositores, ele nascera em 1821 e sua mãe só fora liberta em 1824.

O padre não negava ser filho de uma ex-escrava de seu pai. Mas, segundo Barroso, ele e seus irmãos teriam nascido depois de seu pai alforriar e casar com sua mãe. Porém, a oposição insistia que o padre se utilizou de uma falsa justificação de batismo para burlar o seminário Arquiepiscopal da Bahia e alcançar outros direitos.[15]  

Essa narrativa sempre o perseguiu, sobretudo orquestrada pelo poderoso médico, da elite proprietária e política, seu maior contendor, José de Barros Pimentel, (1817-1893). Pimentel atormentava o padre e sua família com uma suposta certidão de nascimento e outros documentos, para provar a condição jurídica de José Gonçalves Barroso e seus irmãos, afirmando que eles eram filhos de escrava, e que por isso não teriam direitos à ordenação católica, nem votar e nem ser votados, conforme a Constituição vigente.[16]

Ao fim e ao cabo, nada foi provado contra o vigário geral e sua família. Mas é bom que se diga que padre Barroso sempre soube se proteger através de personalidades poderosas. A exemplo do Barão de Estância, Antônio Dias Coelho e Melo (1822-1904), que era parente do maior opositor do padre-mestre, o dr. José de Barros Pimentel. Assim, sob a proteção do Barão, Gonçalves Barroso tornou-se uma espécie de secretário particular do nobilitado chefe político e grande proprietário.[17]

Apesar das pugnas encarniçadas na tribuna parlamentar, sua carreira política foi longeva e reconhecida com méritos por seus pares. Afinal, foram quase quatro décadas como representante ativo na Câmara Provincial; até o fim de seus dias.

Assim, durante a legislatura provincial de 1882/1883, o reverendo deputado faleceu na madrugada do dia 17 de setembro de 1882.  A notícia foi veiculada nos obituários de jornais do Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e, claro, Sergipe.

Como vimos, José Gonçalves Barroso (1821-1882) buscou ascensão social desde cedo. De família pobre e mãe cativa, conquistou diversos cargos. Atuou por vários anos em múltiplos campos. No entanto, não deve ter sido fácil para ele se manter como parte de uma elite política e intelectual em Sergipe do século XIX, num contexto nimiamente provinciano, patriarcal e escravista.

Notas e Referências:

* Historiador e professor do IFS.

[1] Armindo Guaraná anota em seu dicionário biobibliográfico, de 1925, que o padre Barroso nascera no mês de março. Enquanto o jornal A União Liberal, de 1853, nº 51, anotara o mês de maio. Mas os dois concordam com o ano de 1821.

[2] O irmão de José Gonçalves Barroso, Leandro, também se ordenou padre. O outro irmão, Francisco, foi professor de primeiras letras. (A União Liberal. Estância, 12 de março de 1853, nº 59, p. 03; Jornal de Sergipe. Aracaju, 16 de junho de 1880, nº 53, p. 02-03. Correio Sergipense. Aracaju, 09 de agosto de 1856, nº 41, p. 04; A União Liberal. Estância, 15 de janeiro de 1853, nº 43, p. 04).

[3] A família que deu proteção ao padre Barroso em Salvador foi a do dr. Francisco Antônio d’Oliveira Ribeiro, e seus filhos José Antônio de Oliveira e Pedro Antônio Ribeiro de Oliveira. (Correio Sergipense. São Cristóvão, 06 de novembro de 1852, nº 85, p. 03; A União Liberal. Estância, 16 de fevereiro de 1853, nº 51, p. 04).

[4] Luiz Correa Caldas Lima, de 60 anos, era o padre encomendado interino de São Cristóvão e o preferido dos opositores do padre Barroso para assumir a vigararia da antiga capital. (Ver “O Galo da Matriz”. A União Liberal. Estância, 15 de janeiro de 1853, nº 43, p. 02-04).

[5] Padre Barroso foi nomeado vigário geral no dia 19 de julho. (MENDONÇA, Jacinto Joaquim de. Fala com que foi aberta a Assembleia Provincial. Aracaju, 1º de março de 1862. p. 09).

[6] O pesquisador Oliveira Telles (1859-1935), assim se referiu ao orador padre Barroso: “Nas asas do talento raro e peregrino, com uma palavra fácil e acessível e um metal ou timbre que afetava como por encanto e conforme as oportunidades todas as fibras do sentimento, nunca o vigário José Gonçalves Barroso subia mais alto na eloquência sagrada do que na oração do encontro. Perspicaz e penetrante, Barroso aliava à grandeza do estilo os ensinamentos da arte. Então era um trágico excelso declarando a suprema dor divina. Era Barroso quem atraía as multidões. Foi ele que deu influência à festa dos Passos”. (TELLES, Manuel dos Passos de Oliveira. Religiosidade e festas populares. In MECENAS, Ane; SANTOS, Magno; CARVALHO; Angélica de (org.). Ao Romper do Século XX: o município de São Cristóvão por Manuel dos Passos de Oliveira Telles. Aracaju: Criação, 2023. p. 89-112 [citação p. 102]).

[7] Na Corte, vigário Gonçalves Barroso orou ao Evangelho; pregou missa e Te Deum; além de sermões. (Correio Mercantil. RJ, 28 de julho de 1866, nº 207, p. 03; Correio Mercantil. RJ, 11 de dezembro de 1867, nº 339, p. 01).

[8] OLIVEIRA NETO, Urbano de (Editor). Diário do Imperador D. Pedro II na sua visita a Sergipe em janeiro de 1860. Revista do IHGSE. Aracaju, n. 26, v. 21, p. 64-78, 1961-1965. [citação p. 65]. Padre Barroso fez parte da comissão designada para felicitar a Suas Majestades logo que chegaram a Aracaju. (Correio Sergipense. Aracaju, 06 de janeiro de 1860, nº 03, p. 03).

[9] SOUTO, José Ferreira. Relatório apresentado à Assembleia Provincial. São Cristóvão, 03 de maio de 1847, p. 06. Padre Barroso foi jubilado como professor de filosofia em 1858. (CALAZANS, José. O ensino público em Sergipe. Revista do IHGSE. Aracaju, nº 20, 1949. p. 114). Sobre o professor e diretor de colégio, ver Correio Sergipense. São Cristóvão, 20 de novembro 1847, nº 89, p. 06; Correio Sergipense. São Cristóvão, 04 de novembro 1848, nº 83, p. 04; Correio Sergipense. São Cristóvão, 17 de novembro 1849, nº 81, p. 04. A Biblioteca Pública da Província de Sergipe foi criada em 1851 pelo presidente Amâncio João Pereira de Andrade, com base na lei nº 233, de 16 de junho de 1848. Os primeiros doadores de volumes para o acervo da biblioteca foram: Barão de Maruim; Joaquim José d’Oliveira (médico); Martinho de Freitas Garcez (Advogado e político autor do projeto para criação da biblioteca). Correio Sergipense. São Cristóvão, 09 de julho de 1851, nº 48, p. 01-03. BARROSO, José Gonçalves. Relatório do Bibliotecário. São Cristóvão, 30 de janeiro de 1854, 04 p. [Apenso 04 ao Relatório do presidente Inácio Joaquim Barbosa, de 20 de abril de 1854].

[10] A Assembléa Catholica. S. Cristóvão, 06 de setembro de 1859; nº 01; A Assembléa Catholica. S. Cristóvão, 20 de setembro de 1859; nº 02; Correio Sergipense. Aracaju, 23 de fevereiro de 1860, n. 19, p. 03; GUARANÁ, Manuel Armindo Cordeiro. Dicionário Biobibliográfico Sergipano. Rio de Janeiro: Pongetti, 1925.

[11] LIMA JÚNIOR, Francisco de Carvalho. Memória sobre o Poder Legislativo em Sergipe. Revista do IHGSE. Aracaju: Imprensa Oficial, 1919, p. 54-93, v. IV.

[12] Barroso sai dos Liberais e debanda para o lado dos conservadores no governo de Oliveira e Silva (1851-1853). Depois ele retorna para o partido Liberal ao lado do seu protetor e amigo, até o fim da vida, Barão de Estância, Antônio Dias Coelho e Melo (1822-1904). ALMEIDA, Aurélio Vasconcelos de. Representação da Província de Sergipe D’el Rei no Parlamento Nacional, 1823-1889. Revista do IHGSE, Aracaju, 1949-1951, nº 20, p. 38 et passim. Jornal de Sergipe. Aracaju, 16 de junho de 1880, nº 53, p. 03.

[13] ALMEIDA, Aurélio Vasconcelos de. Esboço biográfico de Inácio Barbosa. Aracaju: Sercore, 2000. p. 190-193; 215 e 238. v. 01.  Padre Barroso “deixou grande número de sermões inéditos, dos quais os seus herdeiros ofereceram a maior parte ao falecido Padre José Joaquim Ludovice, vigário de Simão Dias, e os restantes ao Padre José Joaquim de Brito, atual vigário de Vassoura, Estado do Rio de Janeiro”. (GUARANÁ, Armindo. Dicionário Biobibliográfico Sergipano. Rio de Janeiro: Pongetti, 1925.  

[14] Verbetes Lambão e Pitorra. In MORAES E SILVA, Antonio de. Diccionario da Lingua Portugueza. 3 ed. Lisboa: Typographia de M. P. de Lacerda, 1823. p. 142 e 417, tomo 2º. Pitorra como alguém baixo e gordo, ver: HOUAISS, Antônio (Org.). Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. [01 cd-rom].

[15] A União Liberal, Estância, 16 de fevereiro de 1853, nº 51, p. 03.

[16] Barroso suspeita que esse “rancor de sempre” se devia porque ele nunca reconheceu Barros Pimentel como líder liberal em Sergipe; mas sim o Barão de Estância. (A União. Estância, 27 de janeiro de 1853, nº 46, p. 03; Jornal de Sergipe. Aracaju, 16 de junho de 1880, nº 53, p. 03; entre outras edições).

[17] Diário do Rio de Janeiro, 28 de setembro de 1876, nº 262, p.01. Em 1873, os Liberais se dividem, Barros Pimentel passa a atacar o Barão da Estância, seu parente. O Barão era aliado de padre Barroso na província. (ALMEIDA, Aurélio Vasconcelos de. Representação da Província de Sergipe D’el Rei no Parlamento Nacional, 1823-1889. Revista do IHGSE. Aracaju, 1949-1951, nº 20, p. 55).

 

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