Sergipe Gastronômico: uma viagem do século XVI ao XX | F5 News - Sergipe Atualizado

ARTIGO
Sergipe Gastronômico: uma viagem do século XVI ao XX
Historiador Amâncio Cardoso expõe diversidade de alimentos de várias matrizes étnicas
Cotidiano 30/03/2024 18h30 - Atualizado em 30/03/2024 18h32


Por Amâncio Cardoso (professor de História aposentado, IFS)

A gastronomia é o estudo das relações entre a comida e a sociedade. É um conhecimento interdisciplinar que envolve aspectos ligados à história, cultura, nutrição, economia e tecnologia da alimentação. Por conseguinte, o saber gastronômico une conhecimentos e práticas relacionadas com a arte culinária.[1]

No âmbito alimentar, o território sergipano teve suas peculiaridades de acordo com os encontros étnicos-históricos (ameríndios, europeus e africanos). Assim, desde o século XVI, houve uma diversidade de alimentos e práticas a partir das contribuições dessas matrizes étnicas.

Examinemos, assim, alguns documentos através dos quais sintetizamos o regime cultural de alimentação dos grupos sociais que viveram em Sergipe ao longo dos últimos cinco séculos.

No século XVI, por exemplo, durante a primeira tentativa de catequese jesuítica das tribos que habitavam entre os rios Real e São Francisco, para fundar missões, predominava uma alimentação derivada da mandioca e mariscos; ou seja, frutos da terra e do mar característicos das culturas ameríndias locais.

Assim, na carta escrita da Bahia pelo reitor jesuíta Inácio de Toloza (1533-1611) ao padre geral da Companhia de Jesus, em 07 de setembro de 1575, em que descreve sobre a catequese dos missionários Gaspar Lourenço e João Salônio nas terras além do rio Real até o rio São Francisco, ele registra: “... a comida [dos indígenas e dos jesuítas] não era mais que bananas e farinha molhada em água, pimenta, e por fruta tinham alguns caranguejos que os índios traziam seis léguas d’ali.”.[2]

Após a tentativa de conquista religiosa em 1575, a investida militar definitiva para ocupação do território dos indígenas, com dizimação e escravização desses grupos, ocorreu através da Guerra de Conquista, em janeiro 1590, comandada por Cristóvão de Barros. Em seguida a este fato bélico, sesmarias passaram a ser solicitadas e entregues àqueles combatentes lusos-baianos que vieram auxiliar o exército de Cristóvão de Barros, para consolidar o processo de colonização das terras.

A partir de então, cartas de sesmarias foram expedidas para fixação dos primeiros colonos de Sergipe. Tomemos o exemplo de uma carta de 07 de setembro de 1606: “Dizem Joan Dias Martin Alves e Domingos Coresma estantes nesta capitania [de Sergipe] que eles não têm terras suficientes para suas criações, assim de gado vacum como de suas criações miúdas.”.[3]

Vários foram os sesmeiros que pediram, e receberam, terras para criação bovina. Desse modo, Sergipe passou a ser um território pastoril. Esta situação se refletiu na culinária local, cujos pratos tinham, e ainda têm, a carne de boi como ingrediente básico.

Vejamos o testemunho de uma imigrante alemã, Adolphine Schramm (1826-1863), que viveu em Maruim no século XIX, no qual se percebe a intensa presença da carne bovina na dieta cotidiana: “Aqui [em Maruim-SE] é uma grande arte servir carne de boi sete dias por semana, sempre preparadas de maneiras diferentes, dando a impressão de pratos distintos. Todos os dias, tomamos uma ótima sopa de carne, (...). Depois vem a carne cozida (...). Finalmente, todos os dias, carne assada...”.[4]

Durante os séculos XVIII e XIX, os pastos bovinos foram acompanhados pela plantação de cana nas fazendas e a produção de açúcar nos engenhos, sobretudo na região das matas próximas a rios e ribeirões. Neste período, por exemplo, o presbítero D. Marcos Antônio de Souza (1771-1842), deixou relato afirmando que em Sergipe “todo o fabrico de açúcar chega a oitocentas caixas, que exportam para a Bahia e em seu troco recebem escravos para os engenhos e mercadorias de Portugal”.[5]

Com o número de engenhos e a produção sacarina aumentando a partir do século XIX, indo até o século XX, aparecem desde então na dieta dos sergipanos as sobremesas doces, cuja base de preparação é o açúcar dos tachos de engenho.

Tomemos como exemplo dessa proliferação dos doces açucarados no regime alimentar dos sergipanos, o testemunho do político, industrial e jornalista Orlando Vieira Dantas (1900-1982). Criado nos engenhos da família, nas primeiras décadas do século XX, Orlando Dantas escreveu que ali “os doces eram outras especialidades, (...). Eram de caldas: de laranja da terra, de leite e ovo, de goiabas descascadas e sem caroço, (...). Os doces de massa eram de goiaba, banana e coco”.[6]

Além dos pastos e engenhos, Sergipe também possuía a presença de várias lagoas, rios e ribeirões das bacias do São Francisco, Japaratuba, Sergipe, Vaza-Barris, Piauí e Rio Real, os quais forneciam pescados, mariscos, além de terras que favoreciam a agricultura de subsistência.

Nestas áreas, portanto, os produtos de subsistência básica eram os mariscos, pescados, o feijão e a mandioca. Ouçamos dois testemunhos sobre esses produtos.

A primeira fonte é a da já citada imigrante que viveu em Maruim entre 1858 e 1863, Adolphine Schramm. Numa de suas cartas, ela comenta sobre a presença constante do caranguejo na dieta básica das populações de baixo estrato. Ela relatou: “os caranguejos são, aqui, um alimento básico e muito barato. (...). Algumas casas estão inteiramente minadas por eles.”.[7]

A segunda fonte é o não menos precioso testemunho do também já citado D. Marcos Antônio de Souza, que viveu em Sergipe entre os séculos XVIII e XIX. Sobre aqueles produtos básicos da alimentação dos sergipanos de então, os mariscos e peixes, ele registra: “nos seus mangues [de Sergipe] se criam diversas espécies de mariscos; nos seus rios se nutrem saborosos pescados: robalos, carapebas, piaus, tainhas e gostosas curimãs”. Já sobre a semente leguminosa, ele nos informa: “as margens dos rios são cobertas de humus ou massapê em que se plantam os feijões que servem de ordinário sustento a todos os habitantes deste território”. Por fim, quanto ao “pão da terra”, Dom Marcos esclarece: “ali também se planta mandioca, que produz muito bem”.[8]

Assim, com a produção de feijão, da farinha de mandioca e da carne bovina na base alimentar dos sergipanos, durante os séculos XIX e XX, surgirá nas cozinhas um prato que se tornará comum à mesa de todas as camadas sociais, qual seja, a feijoada.

Vejamos o testemunho do já citado Orlando Dantas, em seu clássico “A vida patriarcal de Sergipe”, em que nos oferece a memória de uma receita de típica feijoada, preparada na cozinha da fazenda de sua família, na zona da mata sergipana, no início do século XX. Ele anotou: “carne de boi, jabá, carne de porco e toucinho eram os ingredientes indispensáveis. Depois se completava com o feijão mulatinho, o repolho, a abóbora, o quiabo, o maxixe, (…), o sal, a pimenta do reino, o cozimento em fogo lento, mexido com a delicadeza exigida pela mão perita e o olfato sutil da iaiá”. A feijoada era alimento de todos, tanto para deleite dos proprietários dos engenhos quanto para os trabalhadores no eito.[9]

Quanto aos peixes e mariscos, outros produtos da base alimentar dos sergipanos, surgem também nas memórias gustativas do autor da vida patriarcal de Sergipe. Ouçamo-lo: “os peixes assados e fritos, temperados com azeite de oliva e pimenta de cheiro. As fritadas de camarão, caranguejo e aratu eram um regalo especial”.[10]

Saindo de uma cozinha de proprietário de fazenda e passando para uma cozinha de trabalhadores urbanos, ainda do início do século XX em Sergipe, veremos que a carne de boi, o feijão e a farinha de mandioca também compõem a base da comida do dia a dia.

Tomemos como fonte, por exemplo, um trecho do clássico romance realista urbano “Os Corumbas”, de Amando Fontes (1899-1967), publicado em 1933. Nele se narra o êxodo e o cotidiano de uma família do interior de Sergipe, que vem morar em Aracaju do início do século XX, para trabalhar nas fábricas de tecido e no setor ferroviário.

Assim, em um passo da obra, sr. Geraldo Corumba, o pai, chegando em casa, diz à esposa: “- Eh! Zefa! Estou com fome. Bote aí alguma coisa pro velho mastigar. Sá Josefa não tardou, com um pedaço de charque assado e um pouco de feijão aguado no fundo de uma tigela”.

Em outro trecho do romance-documento, as filhas do casal almoçam depressa, esperando o apito da fábrica chamá-las para a faina diária. Vejamos: “as raparigas conversavam, comendo em rápidas garfadas o seu charque com farofa”.[11]

Como vimos, ao longo de cinco séculos de cultura alimentar, Sergipe teve como base de sua culinária alguns alimentos que fizeram parte tanto de suas relações sociais de produção (mandioca, feijão, mariscos e pescados) quanto de sua formação geopolítica para ocupação do território (carne de boi e cana-de-açúcar).

Contudo, salvo engano, um dos alimentos mais basilares na mesa dos sergipanos durante estes cinco séculos foi a mandioca e seus derivados. Exemplo dessa assertiva se revela num precioso estudo antropológico publicado em 1979 pela pesquisadora Núbia Marques (1927-1999), da Universidade Federal de Sergipe.

Nesta pesquisa, Marques visitou cerca de quinze casas de farinha artesanais em povoados dos municípios sergipanos de Buquim, Nossa Senhora do Socorro e Japaratuba. Seu objetivo era estudar o processo de produção artesanal da mandioca e a “aplicação do produto no âmbito alimentar”, econômico e cultural.

No campo da culinária, a pesquisadora registrou várias formas de uso da mandioca entre os sergipanos. A exemplo da utilização da farinha pura ou no pirão; da massa puba e da tapioca, das quais se fazem beijus secos e molhados, sarolhos, macasados e pés de moleque; da macaxeira cozida com acompanhamentos; do bolo de macaxeira; do mingau de puba; sem falar do uso da folha tenra da mandioca para a elaboração da maniçoba, prato “muito em uso nas cidades de Estância, Lagarto e Simão Dias”, conclui Marques.[12]

Como vimos, Sergipe é um pequeno território que produziu uma diversidade culinária característica entre os séculos XVI até nossos dias. Embora tenhamos destacado produtos básicos de nossa dieta, temos retirado das águas e da terra muitas possibilidades gastronômicas que formatam nossa identidade cultural, enquanto povo em busca de sobrevivência, mas também da manutenção de suas relações sociais e de seu desenvolvimento econômico.

Afinal, como nos informa uma recente pesquisadora da culinária sergipana, Paloma Naziazeno, é possível reconhecer as bases de uma cultura a partir da gastronomia, pois é “através da comida [que] preservamos a memória de um povo, englobamos emoções, caracterizamos formas de pertencimento, damos significados e estreitamos as relações sociais, reafirmando identidades coletivas. A memória social e sua narrativa se encontram também na comida”.[13] 

Referências:

[1] HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. 01 Cd-rom.

[2] FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe (1575-1855). 3. ed. São Cristóvão: EDUFS; Aracaju: IHGSE, 2013. p. 93.

[3] FREIRE, Felisbelo. Idem. p. 503. 

[4] SCHRAMM, Adolphine. Cartas de Maruim. Tradução: José Edgard da Mota Freitas. São Cristóvão: UFS, 1991. (carta à mãe, nº 7, de 30 de janeiro de 1859). p. 14. 

[5] SOUZA, Marcos Antônio de. Memória sobre a Capitania de Sergipe. Aracaju: Secult, 2005. p. 26

[6] DANTAS, Olando. A vida patriarcal de Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. p. 50.

[7] SCHRAMM, Adolphine. Cartas de Maruim. Tradução: José Edgard da Mota Freitas. São Cristóvão: UFS, 1991. (carta à mãe, nº 6, de 27 de janeiro de 1859). p. 12.

[8] SOUZA, Marcos Antônio de. Memória sobre a Capitania de Sergipe. Aracaju: Secult, 2005. p. 25.  

[9] DANTAS, Olando. A vida patriarcal de Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. p. 49.

[10] Idem, ibidem. p. 50. 

[11] FONTES, Amando. Os Corumbas. 23. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. p. 24 e 27.

[12] MARQUES, Núbia Nascimento. A cultura da mandioca. In O luso, o lúdico e o perene e outros ensaios. Rio de Janeiro: Imago, 1999. p. 93-115.

[13] NAZIAZENO, Paloma. Apresentação. In Panela Sergipana: sabores da terra de araras e cajus. Aracaju: Códice, 2019.

  

Edição de texto: Monica Pinto
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