A QUARENTENA QUE NUNCA EXISTIU | Clarisse de Almeida | F5 News - Sergipe Atualizado

A QUARENTENA QUE NUNCA EXISTIU
Uma inusitada questão é identificada como contribuinte para descumprimento do isolamento social: aquela que fala da paisagem, ou melhor, da falta dela
Blogs e Colunas | Clarisse de Almeida 31/08/2020 12h46

Queridos leitores, andava com saudades!

Depois de longo tempo de reclusão, muitas das reflexões acerca desta famigerada pandemia estão finalmente maduras para compartilhamento. Começamos então pela incapacidade de nossa população de cumprir a quarentena indicada para estes eventos. 

Muitas seriam as razões para essa recorrente desobediência civil; desde as políticas públicas antagônicas adotadas pelos poderes, até o espírito irreverente do povo brasileiro, passando pelas condições de moradias em nossas cidades, e das financeiras daqueles que não podem ser dar ao luxo de não trabalhar um dia sequer. Há, no entanto, uma inusitada questão, identificada como grande contribuinte para o descumprimento do isolamento social: é aquela que fala da paisagem, ou melhor, da falta dela.

A respeito disto escrevi texto integrante do livro “Coronavírus e as cidades no Brasil, de autoria e organizado pelas arquitetas e urbanistas Leila Marques e Andrea Borges, produzido durante os meses iniciais da pandemia, quando Aracaju apresentava índices em torno de 50% de isolamento. Extraio dele os trechos a seguir, desejando estimular a observação dos espaços da cidade que realmente estão disponíveis para todos e, quem sabe, arregimentar defensores da vital paisagem. 

“O novo coronavírus tem desnudado sem piedade a péssima qualidade de vida dos brasileiros nos centros urbanos. Sub-habitações, ausência de saneamento básico, infraestrutura deficiente, entre outras problemáticas. Porém, um aspecto que devemos levar em consideração para diminuir o endurecimento do confinamento, é a questão da paisagem possível.

Sabemos todos que, para o equilíbrio emocional do ser humano, é imprescindível a possibilidade do “olhar ao longe”, aquele que vai de encontro aos espaços vazios, ao horizonte, aos céus! A paisagem é a materialização mais imediata e momentânea da vida social, e, portanto, precisa ser analisada no contexto do cotidiano, das representações da natureza e dos seus significados (ORTIGOZA, 2010). Quem, confinado em sua moradia, possui um mínimo desse privilégio?’
 
“Essa percepção contribui para o entendimento de quem afinal tem acesso a contemplação. É preciso estar acima da linha do observador na escala humana para ver além, portanto a princípio os moradores dos edifícios mais altos seriam aqueles presenteados com uma “visão”. 

“Na cidade das águas, como Aracaju também é conhecida por ser banhada por 04(quatro) rios e pelo mar; os edifícios altos, ocupam a faixa litorânea, e as margens do rio Sergipe, áreas nobres, e seus moradores acastelados não encontram dificuldade nenhuma em ficar em casa; de suas varandas mirantes, observam protegidos o pequeno movimento presente na zona sul da cidade, as orlas, as praias. Já nas margens dos outros rios, encontram-se as sub-habitações, as invasões, as ocupações irregulares, que resultam em cenários degradados. Na zona norte, massa densa de edificações unifamiliares, onde famílias grandes dividem metragens mínimas, a rua é o complemento espacial indispensável para a população viver, respirar. Sem espaços livres e sem paisagens, a população arrisca a vida em busca de um pouco de ar. Mais que isso, é preciso buscar uma visão alentadora que, nesse caso, corrobora com a ideia que a paisagem se traduz como campo de significação individual e sociocultural (BARBOSA, 1998).

Sobreviver é a ordem do dia. Os pequenos comércios são a desculpa para se estar na rua. O que seria contágio comunitário? Comunitário é o calor e a fome. Entendemos assim, onde estão os 50% que cumprem e os 50% que descumprem o isolamento sugerido. Simples demais.” 

Referências bibliográficas:
BARBOSA, Jorge Luiz. Paisagens americanas: imagens e representações do wilderness. Espaço e cultura, n. 5, jan./jun. 1998. 

BERQUE, Augustin. Paisagem-marca, paisagem-matriz: elementos da problematica para uma geografia cultural. In: CORREA, Roberto Lobato e ROSENDAHL, Zeny (orgs.). Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: Editora da VERI, 1998. p. 8491.

ORTIGOZA, SAG. Paisagens do consumo: São Paulo, Lisboa, Dubai e Seul [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. 232 p. ISBN 978-85-7983-128-7. Available from SciELO Books 

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Arquiteta e Urbanista pela FAUSS/RJ, especialista em Tecnologia Educacional pela UERJ e em Paisagismo pela UFLA/MG. Atua com ênfase em Desenho Urbano e Projetos de Edificação e Paisagismo. Leciona no curso de Arquitetura e Urbanismo da UNIT. Possui trabalhos reconhecidos nacionalmente e tem sido palestrante em variados eventos. É membro da equipe da Ágora Arquitetos.

E-mail: arqclarissedealmeida@gmail.com

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