A vida após a morte em duas abordagens intrigantes e bem humoradas | Levando a Série | F5 News - Sergipe Atualizado

A vida após a morte em duas abordagens intrigantes e bem humoradas
"Drop dead diva" lida com aprendizados; "Upload", com um nível utópico de tecnologia 
Blogs e Colunas | Levando a Série 29/01/2021 16h30 - Atualizado em 29/01/2021 18h06

Se tivesse o poder de escolha, o que você ia preferir: ser belo(a) e com inteligência bastante limitada, ou estar fora dos padrões de aparência impostos pelo senso comum com ajuda da propaganda, porém dispondo de um cérebro que, digamos, mostre a que veio? Uma cabeça que não sirva apenas para separar as orelhas, como se dizia na minha infância? Esse é o dilema enfrentado pela jovem modelo Deb Dobkins ao retornar à vida terrena, depois de morta num acidente de carro, na série Drop dead diva (exibida pela Globo com o nome de “Sob medida” e hoje disponível na Globoplay). Acontece que, por um vacilo celestial, ela volta no corpo da advogada Jane Bingum, no momento em que esta dava o último suspiro passando por uma cirurgia, vítima de um tiro. A nova embalagem de Deb, além de ter uns dez anos a mais em idade do que a original, está acima do peso – um problemaço para a modelo, embora Jane seja muito bonita e um singular exemplo de charme brotando naturalmente por todos os poros.  

 

Digerido o susto, a moça descobre que, junto com o corpo da advogada, herdou também sua inteligência e seu conhecimento jurídico. E vai se encantando com uma vida de possibilidades inéditas – literalmente -, em contraponto ao lado superficial que nutria até então, sequer tendo ciência disso. Admito que me incomodou um pouco a maneira pela qual Deb se acidenta fatalmente, porque, com todas as letras, a cena faz dela uma idiota completa. Não é o caso e ainda fortalece o preconceituoso binômio “bonita e burra”. Fora que superficialidade tem chance de cura – em geral idade e experiência ajudam -; já reverter burrice é mais complicado. E Deb tinha um parceiro gato e inteligente, Grayson Kent, que a amava de verdade e muito sofreu com sua morte, ponto para ela.   

 Vamos ao elenco: a modelo Deb Dobkins, interpretada pela atriz canadense Brooke D'Orsay, aparece no primeiro episódio e ao longo da série em flashbacks. Nada a questionar sobre a competência dela, mas sua nova versão, a advogada Jane Bingum, é quem de fato amplifica a qualidade da história, na pele da atriz e cantora norteamericana Brooke Elliott. O “parceiro gato e inteligente” de Deb está a cargo do ator Jackson Hurst. Longe de mim o desmerecer, mas podia ser outro talentoso que não faria grande diferença. Já o anjo Fred, que gruda em Jane, incumbido de evitar a potencial catástrofe de um erro que levou uma consciência ao corpo errado, é tão fofo quanto imprevisível. Um encanto, mérito do ator Ben Feldman, que acumula papéis em séries – de "Mad Man" a "Superstore", esta em exibição no canal por assinatura Warner. Há ainda a assistente da advogada, Terri Lee, que, pela atuação da atriz Margaret Cho, também comediante, se destaca, assim como a melhor amiga de Deb, Stacy Barrett, cuja intérprete, a atriz April Bowlby, consegue se dissociar da personagem Kandi, que encarnou em "Two and a half men", já comentada nessa coluna.  

Drop dead diva  é leve e agradável, embora classificada como “dramédia” – o misto de drama com comédia. Em tese, há uma feição dramática, mas, falando por mim, na prática a história muito mais alegrou do que entristeceu. Sem grande pretensões, a série apresenta Deb descobrindo as vantagens de abraçar os aspectos positivos de Jane, sobretudo no campo da autoconfiança. E o valor dessa decisão fica evidente em cada episódio, por intermédio das questões jurídicas operadas com eficiência e ética exemplares pela modelo que encarnou em uma advogada.  Drop dead diva foi criada por Josh Berman, co-produtor executivo de uma série de grandes sucesso e longevidade: CSI (sigla de "Crime Scene Investigation", Investigação da Cena do Crime). Vou parar por aqui, como de hábito explicando que já adentraria no território do spoiler. Porém, impossível resistir a uma última informação: se lembram do Grayson, o grande amor recíproco de Deb? Jane vai à luta no propósito de o reconquistar, tempero delicioso de uma história que me valeu a pena em cada segundo. 

Passemos à segunda sugestão: Upload (no Brasil, com a extensão “Realidade virtual), disponível na Amazon Prime Video e com nova temporada já em produção. A história, já tida por muitos como um ícone da vida pós-moderna, foi criada por Greg Daniels, que assina uma das mais queridas séries de todos os tempos e sobre a qual ainda falarei: "The Office" (O escritório). 

Estamos no ano de 2033 – num futuro próximo, portanto – e descobriram como salvar a consciência humana da morte, fazendo o upload dela para paraísos virtuais, acessíveis obviamente apenas a quem pode dispor da fortuna que isso custa, mensalmente. Há várias categorias de planos dessa realidade pós-vida, a depender do luxo contratado. Os “upload” – como são chamados os clientes de uma das poucas megacorporações a prestarem o serviço – tem à sua disposição um atendimento 24 horas por dia, no paraíso digital chamado Lake View. Ele é prestado por uma pessoa viva, que consegue acessar o ambiente virtual e, assim, como num relacionamento de verdade, trabalha para dar conta das dúvidas e solicitações daqueles seres nem mortos, nem vivos. Essa turma de funcionários do mundo real trabalha naquelas estações comuns a várias empresas e cada um se apresenta ao cliente a quem deve acompanhar pela sugestiva alcunha de “anjo”,  já que qualquer interação minimamente íntima é proibida, o que inclui ser conhecido(a) pelo próprio nome. 

O engenheiro de computação Nathan Brown, interpretado pelo ator canadense Robbie Amell, não se conforma que apenas os muito ricos tenham a chance de sobreviver à morte física, sendo carregados – aqui no sentido tecnológico - aos chamados “paraísos digitais”. E eles prosseguem não só com as respectivas consciências, mas também com seus atributos corpóreos e personalidades, mesmo as muito questionáveis. Essa transição, em suma, independe de qualquer mérito evolutivo – basta ter dinheiro para pagá-la. Vai daí, o homem de apenas 27 anos resolve inventar uma possibilidade de upload gratuita e é bem sucedido. Logo que tenta, junto com o sócio, arrumar financiadores para a proposta, Nathan sofre suspeito acidente num daqueles carros que se autodirigem, algo já existente hoje. Enquanto está no hospital, em tese à beira da morte, sua namorada – a rica e bela Ingrid (Allegra Edwards) – o convence a aceitar que ela banque seu upload para Lake View, o luxuoso paraíso digital onde sua família escolheu se perpetuar, com “dados ilimitados”.  Isso não é spoiler, já que em praticamente toda a divulgação da série se mostra Nathan fazendo o processo de “carregamento” para lá. 

A trajetória dele nesse pós-vida é a substância de Upload. Para começar, muitas situações que poderiam ser classificadas como “futuristas”, na verdade, se remetem a tecnologias já objetos de pesquisa avançada e demandando altos investimentos. Fora o exemplo do carro que ninguém humano guia, aparecem as impressoras de “comida”, também já uma realidade  – pasmem. Há uma cena em que um personagem morde algo, cospe o pedaço com cara de nojo e fala ao dono da “cozinha”: “seu cartucho de gordura está vazio”. Destaque-se que alimentos frescos, fornecidos pela natureza, viraram artigos de altíssimo luxo e obviamente, custo. Tem gente viva que nunca sequer os experimentou.  Quanto aos upload, a tecnologia viabiliza que mantenham os cinco sentidos, como se corpos de verdade ainda ocupassem. Uma prova cabal de que o tal “paraíso” digital está longe de ser paradisíaco é a avalanche de propaganda a que seus “moradores” ficam sujeitos, já que seus parentes vivos bancam os custos. No caso de Nathan, a superficial namorada dele, Ingrid, situação que o torna dependente dela inclusive para continuar “vivendo”. Se a conta não for paga, o upload acaba deletado. 

Lembram do “anjo”? O de Nathan é Nora, interpretada pela atriz de múltiplos talentos Andy Allo, também cantora, compositora e guitarrista. O comovente na história da moça é a principal razão dela trabalhar na megacorporação que vende essa vida pós-morte: obter o “desconto de funcionária”, o que torna viável ela bancar o upload de uma pessoa muito importante, gravemente doente. O maior desafio, porém, é convencê-la a aceitar isso, posto que sua prioridade é reencontrar um amor que partiu sem upload, já que não tinha recursos para o processo. Se é “carregada” para o paraíso tecnológico Lake View, jamais terá essa chance. Em termos simples, esse grande afeto de Nora prefere morrer à moda antiga, acreditando numa existência além da matéria na perspectiva espiritual milenar, digamos. 

A meu gosto, Upload tem todos os ingredientes o entretenimento de qualidade. Com leveza e humor, também nos leva a pensar sobre o que vale a pena na caminhada terrena. Não é pouco.

Por fim, deixo a reflexão do sempre afiado Bertolt Brecht: “Temam menos a morte e mais a vida insuficiente”.

Para maratonar:

Drop dead diva – seis temporadas, total de 78 episódios, disponível na Globoplay;

Upload – uma temporada, total de 10 episódios, disponível na Amazon Prime Video.


 


 

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