Dois tabefes inteligentes e divertidos na condição humana | Levando a Série | F5 News - Sergipe Atualizado

Dois tabefes inteligentes e divertidos na condição humana
“BoJack Horseman” e “Os Normais” detonam a hipocrisia e chutam o balde
Blogs e Colunas | Levando a Série 30/10/2020 13h00 - Atualizado em 30/10/2020 14h47

Ouso afirmar que muita gente algum dia já se pegou imaginando como seria incrível ter fama numa dimensão a jorrar dinheiro e, a partir dele, um leque grandioso de opções não restritas ao saldo bancário – realidade inatingível para a maioria dos simples mortais. As celebridades de Hollywood personalizam essa imagem de glamour e sucesso não por acaso, já que a indústria cinematográfica americana se esmerou em alimentá-la sistematicamente mundo afora. A série adulta de animação BoJack Horseman passa um rolo compressor sobre essa felicidade mítica. Não fica pedra sobre pedra. 

Disponível na Netflix, a história tem como personagem principal o cavalo BoJack Horseman, um ex-ator que experimentou a fama como protagonista de uma série aclamada nos anos 80/90 e desde então amarga contínua decadência. Sim, nesse universo antropomórfico, homens e mulheres interagem com uma diversidade gigantesca de animais humanizados – de libélulas a golfinhos. Especialmente em comum com a dita espécie sapiens, estão sujeitos aos dramas inerentes à caminhada humana sobre a Terra. Uma baleia é âncora de telejornal; a empresária de BoJack é a gata Princesa Caroline, sempre de terninho, e seu rival artístico, o cão Mr. Peanutbutter.  Este, o Sr. Manteiga de Amendoim (na tradução), é um dos meus personagens favoritos. Ator em  fase de glória – daí o incômodo de BoJack –, ele consegue associar o lado humano a várias características de sua raça canina, labrador. Está sempre alegre, simpático, cheio de energia e desprovido de agressividade. 

No elenco principal, há outros dois destaques, ambos humanos da cabeça aos pés. A jornalista Diane Nguyen é vietnamita – nacionalidade rara no universo ficcional –, e contratada por BoJack para escrever a biografia dele, estratégia na perspectiva de recuperar algum espaço na mídia. O outro é Todd Chavez, um cara tão bondoso quanto “fora da casinha” em termos práticos, este dublado pelo ator Aaron Paul, de quem já falamos como um dos protagonistas de Breaking Bad

Esse perfil singular da série, ao abraçar o surreal em cenas nas quais, por exemplo, um camarão aparece sentado à mesa num restaurante conversando com uma tartaruga, ou os pulos tipicamente felinos dados pela empresária gata quando está nervosa, não justifica o patamar de sucesso alcançado por BoJack Horseman. A história fez muito mais do que divertir pelo viés do insólito. Ao expor sem piedade a hipocrisia nos bastidores de sua ambiência obviamente analógica à hollywoodiana, transcendeu esse limite espacial e pulverizou reflexões aplicáveis à condição humana de modo geral. No decorrer da narrativa, vêm à tona assuntos polêmicos e/ou ainda encarados como tabu, como alcoolismo, depressão, traumas variados e e expectativas da maternidade, entre outros. 

Classificada como comédia dramática, a série é uma criação do californiano Raphael Bob-Waksberg, nada mal para a primeira experiência do escritor e produtor de apenas 36 anos, completos em agosto passado. Uma crítica da revista Time resume essa consagração já no título: “A temporada final de BoJack Horseman prova por que é a série animada mais importante desde Os Simpsons”. E diz no corpo do texto: “Motivado ou preguiçoso, maníaco ou depressivo, o que todos neste mundo compartilham é inquietação. (...) Na Hollywood de BoJack Horseman, cada estrela está flutuando em um abismo privado”.

Com aclamação geral pela crítica, a série foi duas vezes a do Critics Choice Awards como “melhor série de animação”, em 2019 e 2020, depois de indicada em 2018. Mas veio da inglesa BBC o título talvez mais pomposo: "a melhor animação do século 21". A análise coloca como uma das histórias mais contundentes a do episódio da segunda temporada em que a jornalista Diane Nguyen (Allison Brie) tenta expor uma celebridade por seu suposto comportamento abusivo.  “Não foi apenas uma história poderosa sobre o abuso de poder de um homem fictício, mas o monólogo de Diane a Hank a viu desenrolar uma lista de homens que também enfrentaram alegações reais de assédio ou abuso; Christian Slater, Bill Murray, Woody Allen.  Foi um tiro contundente, não disparado contra um animal [a BBC o identifica, mas não o farei]  em um mundo imaginário, mas contra todos os homens reais protegidos por uma indústria que poderia perder financeiramente foram supostos abusadores realmente responsabilizados”. E completa: “De repente, BoJack não era apenas um show apresentando animais falantes em uma terra de fantasia, mas um espelho deformado destinado a vermos a sociedade americana, para que um tanto melhor vejamos sua feiura”.

Passando enfim à segunda série de hoje, ela, como BoJack Horseman, é uma aposta libertária, desta feita na TV aberta brasileira e disponível na Globoplay: “Os Normais”, exibida pela Rede Globo entre junho de 2001 e outubro de 2003. Hoje certamente ensejaria reações negativas nas redes sociais, mas há quase vinte anos não havia esse espaço virtual capaz de garantir tamanha visibilidade à proposta de patrulhar a vida alheia. 

“Os Normais” apresenta a história de um casal na faixa dos 30 anos: Rui, interpretado por Luiz Fernando Guimarães, e Vani, papel inesquecível de Fernanda Torres. Eles são noivos, fato irrelevante no quadro geral, já que na prática eles não demonstram grande compromisso, por exemplo, com o quesito fidelidade. Pesquisando, encontrei Rui definido como “um carioca sossegado e alto astral que torce pelo Botafogo e trabalha no departamento de marketing de uma empresa”. Já Vani consta como “uma vendedora de loja de roupas neurótica e atrapalhada”. Achei bem impreciso e um flerte com o machismo. Rui nada tem de “sossegado”, é o clássico “galinha”- e Vani não tem ilusões a esse respeito. Em um episódio, ela incentiva o noivo a sucumbir à sedução da nova chefe, operação voltada a manter o emprego dele, por um fio: “você vai me trair de qualquer jeito”, diz ela, com a clareza e a autenticidade que os une.  Tudo bem, Vani até faz jus às classificações de “neurótica e atrapalhada”, mas isso também se aplica a Rui.  Ambos personificam a antítese de “normalidade” – entre aspas mesmo –, panorama perfeito para a série ter sido um grande sucesso no campo da comédia nacional. Comigo funcionou demais. 

Dirigido por José Alvarenga Jr., que antes já assinara “Sai de baixo”, outro triunfo no gênero, “Os Normais” teve criação e roteiro de Alexandre Machado e Fernanda Young, marido e mulher. Ela morreu em agosto de 2019, aos 49 anos, vítima de uma crise de asma – que tinha desde a infância -, seguida de parada cardíaca. Deixou quatro filhos e muita saudade nos admiradores de toda a sua irreverência e, mais além, coragem de ser quem era. 

A prova de que muita gente se divertiu com as loucuras de Rui e Vani foi que, mal terminou a série “Os Normais” em 2003, chegava aos cinemas o longa-metragem nela inspirado, homônimo.  O roteiro ficou outra vez a cargo do casal Machado e Young e repetiu-se ainda a direção de José Alvarenga Júnior. Em 2009, chegava às telonas outro longa do casal – “Os normais 2 – A noite mais maluca de todas”.  

Por fim, deixo à reflexão o pensamento de um dos meus filósofos preferidos – o francês Michel Foucault: “Devemos não somente nos defender, mas também nos afirmar, e nos afirmar não somente enquanto identidades, mas enquanto força criativa”. É isso aí. 

Para maratonar:
BoJack Horseman – seis temporadas, total de 76 episódios, completa e disponível na Netflix;

Os Normais – três temporadas, total de 71 episódios, completa e disponível na Globoplay. 

   

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