Educação sexual é ferramenta para combater abusos, segundo especialistas
Em Sergipe, são desenvolvidas algumas ações para prevenir essa violência Cotidiano | Por Ana Luísa Andrade 20/10/2022 06h00Na última semana, o caso de uma criança de apenas dois anos que morreu após ter sido violentada sexualmente chocou a população sergipana. O fato se tornou ainda mais impactante após o padrasto da vítima confessar a autoria do crime, do qual a mãe da criança tinha conhecimento e era conivente.
Infelizmente, esse não é um caso isolado. No Brasil, somente no ano de 2021, foram registrados 45.994 casos de estupro de vulnerável, sendo que 76,5% aconteceram dentro de casa. Os autores desses crimes, em sua maioria, foram homens (95,4%) conhecidos da vítima (82,5%). Além disso, 40,8% eram seus pais ou padrastos e 37,2% eram seus irmãos, primos ou outro parente e 8,7% eram seus avós.
Os dados são da última edição do “Violência sexual infantil, os dados estão aqui, para quem quiser ver”, documento que compõe o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O levantamento é realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e conta com a colaboração de diversos profissionais especialistas na área, como a advogada Luciana Temer, que é diretora presidente do Instituto Liberta, organização social que tem o intuito de enfrentar a exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil.
Segundo Luciana Temer, o fato de essa violência ser predominantemente intrafamiliar e a maior parte dos casos ocorrer dentro de casa mostra que a escola deve ser um elemento estratégico fundamental para o enfrentamento do estupro de vulnerável.
“A escola pode ajudar (e já ajuda) no processo de identificação e denúncia, mas, sobretudo, no processo de prevenção. Muitas vezes o abusador se aproveita da ignorância da criança e, se ela tiver consciência, dependendo da situação, pode mesmo evitar que o abuso ocorra. Para aqueles que acham que o ambiente escolar é um risco para os filhos, vale lembrar que apenas 1% dos casos registrados ocorreu em estabelecimento de ensino”, explica a especialista.
Em Sergipe, são desenvolvidas algumas ações nesse sentido. Uma delas é articulada pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Aracaju, por meio da intersetorialidade entre os programas Saúde da Criança, Saúde na Escola e IST/Aids, que tem como objetivo promover a educação sexual de crianças e adolescentes, tanto no âmbito de discutir assuntos pertinentes à temática da sexualidade quanto de abordar a importância de se prevenir contra Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e gravidez precoce.
De acordo com a psicóloga Aline Rabelo, que compõe essa equipe, é preciso entender que a educação sexual é um fator importante para o processo de formação da criança e do adolescente, sendo uma ferramenta de proteção para esse grupo.
“É justamente por não saber sobre a sexualidade que muitas crianças e adolescentes ficam vulneráveis e expostos aos abusos sexuais, sem muitas vezes saber a quem recorrer. Muitas vezes, a criança não sabe o que é certo ou errado, o que é permitido e o que não é. Ela precisa aprender que partes do corpo ela precisa proteger, o que é próprio e o que não é, a quem recorrer caso uma dessas violências aconteçam”, explicou a psicóloga em entrevista ao F5News.
Assim como exposto pelo Anuário de Segurança Pública, Aline Rabelo também chamou atenção para o fato de a maior parte desses crimes ocorrer em um meio familiar, sendo necessário que as crianças e adolescentes tenham a quem recorrer fora desse ambiente.
“Boa parte dos abusos sexuais acontece com pessoas de confiança dessa criança: pais, padrastos, primos, tios, pessoas que são do convívio familiar. Então se essa pessoa, que seria responsável por fazer a educação sexual e por proteger essa criança, se ela mesma comete esse abuso, qual referência ela vai ter? Em muitos casos, a violência acontece e essas crianças e adolescentes silenciam porque elas não sentem confiança em nenhum adulto para falar sobre o assunto”, ponderou a psicóloga.
A especialista também indicou que esse tipo de violência pode impactar a vítima não somente no momento em que é praticada, mas principalmente com consequências a longo prazo. “Um abuso sexual, em qualquer etapa da vida, deixa marcas muito profundas: problemas de construir intimidade, de confiança, de lidar com a própria sexualidade. Na infância, essas marcas são ainda mais profundas, porque a criança não tem o entendimento do que realmente aconteceu. Ela tem uma ideia, mas não tem o entendimento formado”, concluiu.
Aline Rabelo reforça que é fundamental desconstruir a ideia de que educação sexual é estimular crianças e adolescentes ao início precoce da vida sexual.
“Educação sexual é falar sobre sexualidade, entendendo sexualidade como esse campo complexo que fala de comportamentos, aprendizagens, modos de existência, formas de se expressar, formas de desejar, de expressão de gênero, e isso acontece desde o momento do nosso nascimento. É falar justamente daquilo que é possível aprender, respeitando cada etapa do desenvolvimento da criança e do adolescente”, esclareceu.
Foi justamente para desmistificar esse assunto que Nathalie Lima, que é professora há mais de 18 anos, escreveu o livro infanto-juvenil “Turma da Aninha em A Brincadeira que Protege”, que tem como objetivo contribuir para a educação sexual de crianças e adolescentes.
“Todos os assuntos ligados à sexualidade ainda são tabus em nossa sociedade. A educação tradicional prefere não tocar no assunto, mas essa atitude deixa crianças e adolescentes sem informação de qualidade e consequentemente desprotegidas. Eu pensei em criar um recurso que abrisse as portas para o assunto de forma leve, para que pais, professores e crianças se sentissem confortáveis para conversar”, contou a escritora ao F5News.
A professora também explicou que o livro aborda o assunto de forma lúdica e adequada à faixa etária. “Tudo que você precisa ensinar a uma criança precisa ser extremamente regado por afeto, pelo lúdico e por situações cotidianas. A prevenção ao abuso não é um assunto isolado. Ela deve ocorrer no cotidiano de cada escola e família”, disse.
O livro foi lançado no dia 22 do mês passado, no Museu da Gente Sergipana.