Rotarianos contra o Cangaço: notas sobre um documento inusitado | F5 News - Sergipe Atualizado

História
Rotarianos contra o Cangaço: notas sobre um documento inusitado
Historiadores Amâncio Cardoso e Francisco José Alves apresentam documento raro
Cotidiano 29/07/2023 18h43 - Atualizado em 29/07/2023 19h03


Amâncio Cardoso (1)
Francisco José Alves (2)

Muito já se escreveu sobre o Cangaço. Este é um dos temas mais debatidos na historiografia nacional. No entanto, vez por outra, surge do pó dos arquivos um documento inédito, ou pouco conhecido, e até mesmo raro, para incrementar o campo de estudos sobre o Cangaceirismo.

Neste sentido, trazemos à luz mais uma dessas fontes que até então, salvo engano, não constam na lista dos historiadores. Trata-se do “Memorial apresentado ao Exmo. Snr. Presidente da República pelos Rotary Clubs de Fortaleza, Quixadá, Natal, João Pessoa, Campina Grande, Recife e Aracajú”. Este documento tem seis laudas impressas, publicado pela Editora Casa Ávila de Aracaju, sem data.

O Memorial foi encontrado no início da década de 1980 pelo então estudante e atual professor aposentado de História da UFS, Francisco José Alves, durante a execução do Projeto de Levantamento de Fontes Históricas de Sergipe, no acervo do Cartório de São Cristóvão-SE. O projeto era coordenado pela professora Maria da Glória Santana de Almeida, do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe (DHI/UFS). O professor Francisco Alves, então, tirou cópia do documento; e o original ficou no acervo do referido cartório.

A fonte é uma espécie de programa de governo que identifica as causas do “banditismo”; os sintomas; as formas de preveni-lo, de combatê-lo e de extingui-lo. Assim, o objetivo dos rotarianos ao elaborar o Memorial para o presidente foi “exortar, pedir, até mesmo implorar (...) uma providência enérgica, tenaz, eficiente e duradoura, contra o terrível morbus social que outro não é senão o Banditismo no Nordeste” (lauda 01, 5º§).

O documento foi assinado pelo então presidente do Rotary Club de Aracaju, J. Couto de Faria, e pelo secretário Leite Neto. O texto foi dirigido e entregue ao então presidente da República Getúlio Vargas (1882-1954). Como o texto foi impresso sob a responsabilidade do Rotary da capital sergipana, este clube representou os demais signatários.

Infelizmente, os assinantes não dataram o Memorial. Contudo, supomos que os rotarianos entregaram o documento ao presidente entre os anos de 1935 e 1937. Pois o Rotary Club de Aracaju foi fundado em 04 de dezembro de 1934. E em 1938, o cangaço foi extinto a partir da emboscada contra o grupo de Lampião, seu mais famoso representante.

Os indícios da entrega em mãos do documento ao presidente da República aparecem em três passagens do Memorial. Na primeira, diz o texto: “... os rotarianos do nordeste brasileiro, (...), tomaram a liberdade de vir à presença de V. Exc.”, (lauda 01, 4º§). Já no segundo passo, registra-se: “Vimos trazer ao chefe do Poder Executivo do Estado Brasileiro, um memorial simples e modesto, ...”, (lauda 01, 5º§).

Quanto a sua estrutura, o Memorial está assim composto: 1- Introdução (laudas 01 e 02); 2- O Banditismo: definição (lauda 02); 3- Causas do Banditismo (laudas 02 a 03); 4- Consequências (lauda 03); 5- Combate ao Banditismo: Meios Preventivos (laudas 04 a 05); 6- Repressão ao Banditismo (laudas 05 e 06).

 Na parte 1, expõe-se os problemas que afligiriam o Nordeste e clamam por uma solução porque o Memorial “representa o grito de dor e de angústia das populações de seis estados componentes da Federação Brasileira”.

Na parte 2, apresenta a definição da sociologia criminal para o Banditismo, como uma modalidade de “comparticipação criminosa, poderosamente influenciada pelo meio telúrico-social”, e sua área de ocorrência no Nordeste.

Na parte 3, apesar de considerar um tema complexo, o Memorial explicita algumas etiologias do banditismo, tais como as condições climáticas e do meio físico; a ausência histórica “do poder coercitivo do Estado”; a falta de instrução integral; a deficiência para a execução da justiça pública; a “falta de trabalho honesto” e a predominância da ociosidade; deficiência dos meios de comunicação e transporte; e, por fim, a mentalidade “supersticiosa, vingativa, aventureira e corajosa” do sertanejo.

Após expor as causas do banditismo, o Memorial passa a apresentar as “consequências” do fenômeno social. A primeira delas é que as “populações do nordeste vivem sobressaltadas”, devido ao recrudescimento do banditismo. A segunda consequência é a diminuição dos cultivos agropecuários, podendo o produtor rural perder o esforço de seu trabalho. Outra consequência é o afastamento dos proprietários das sedes de suas fazendas, tendo ainda que pagar “periodicamente um tributo monstruoso aos bandidos”. E se não pagarem tal tributo “arriscam-se a perder a própria vida”. Por conseguinte, as lavouras vão “se estiolando assustadoramente”; o comércio torna-se “difícil e precário. Os viajantes são assaltados nas estradas. As fazendas saqueadas”, como também as cidades do interior. Ou seja, para os rotarianos o banditismo transformou o nordeste num “verdadeiro inferno”.

Explicitadas a definição, causas e consequências do chamado banditismo praticado pelos cangaceiros, os rotarianos passam a expor as formas de combate através de meios preventivos e repressivos.

Dentre os meios preventivos para combater o banditismo, o Memorial sugere ao presidente da República o enfrentamento das secas no sertão por “processos técnicos”, a exemplo da construção de barragens e açudes.

A segunda sugestão preventiva contra o banditismo seria a aplicação “experimental da economia dirigida e organizada” para fomentar a produção nordestina. Outra sugestão é a criação de “indústrias lucrativas que proporcionem trabalho útil e honesto”, sob a fiscalização de técnicos do governo, para evitar a emigração dos sertanejos ao litoral, “onde as cidades se congestionam com vagabundos, falsos mendigos e desempregados”, afirmam os rotarianos.

Ainda no campo dos meios preventivos ao banditismo, os rotarianos sugerem a melhoria da saúde popular, através do combate às endemias e epidemias que grassam no sertão. Eles também propõem que o governo federal difunda a educação pública, a partir da orientação de “técnicos pedagógicos” competentes; que o ensino primário seja integral e que o ensino militar seja realizado no próprio nordeste. Com o desenvolvimento da “instrução”, os rotarianos previam que a justiça, o ministério público e a polícia estariam livres das “perseguições do mandonismo local” ou dos “mandões políticos”.

Por fim, o Memorial se encerra com sugestões repressivas para combater o banditismo dos cangaceiros. Assim, conforme os signatários, eles teriam chegado “ao ponto cardeal” do documento para combater “os efeitos devastadores desta terrível chaga social”. Assim, os rotarianos do nordeste pleiteiam junto ao presidente Vargas que o governo federal “entregue a chefia suprema desta campanha [de combate ao banditismo] a um nome respeitável do glorioso exército nacional”. Neste sentido, eles pedem a federalização da política de extermínio ao cangaço, através da consignação de “verbas especiais no orçamento federal”. Até então, segundo o documento, o combate era dirigido com empenho pelas polícias estaduais, mas cujos resultados eram sem sucesso e “desanimadores”.

O Memorial é um documento precioso. Ele, sem dúvida, representa o pensamento da elite econômica do nordeste das primeiras décadas do século XX. Nele, percebemos a visão das classes proprietárias sobre as populações sertanejas. O documento expressa a imposição da mentalidade da “civilização do litoral” sobre a “barbárie do sertão”.

No Memorial, o fenômeno do cangaço é tratado como um ente biológico a ser extirpado do tecido social. Expressões como “chaga social” e ‘terrível morbus” são empregadas, conforme as teorias cientificistas que grassavam à época nos meios jurídico-criminais.

Neste sentido, supomos que o texto foi pensado e redigido pelo então secretário do Rotary Club de Aracaju, Leite Neto, um dos subscritores do documento. Francisco Leite Neto (1907-1964) era formado em Direito pela faculdade da Bahia (1935); fez medicina (incompleto) na Bahia e diplomou-se em odontologia. Ele foi diretor da penitenciária de Sergipe (1936-1938); professor de finanças e economia na faculdade de Direito em Aracaju. Escreveu, dentre outros livros, “Estudos sobre economia e finanças” (1933) e “Sergipe e seus problemas” (1937). Além disso, Leite Neto era um grande empresário sergipano, foi deputado federal por várias legislaturas, interventor federal e senador.

Por seu currículo, o então secretário do Rotary Club de Aracaju, Francisco Leite Neto, tinha bastante competência e credibilidade para ser o redator final do Memorial contra o Cangaço que foi entregue ao presidente Getúlio Vargas, pouco tempo antes da chacina de parcela do bando de Lampião, na grota do Angico, em Poço Redondo-SE, no dia 28 de julho de 1938. Consumado este fato, o “clamor dos rotarianos” foi prontamente atendido. 

1 - Professor de História aposentado do IFS-Campos Aracaju.
2 - Professor de História aposentado do DHI-UFS.

Leia também entrevista com o professor Amâncio Cardoso, em 24 de Outubro: Dia da Sergipanidade celebra identidade cultural do estado

   

 

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